Genésio…

Sentou-se à soleira da porta. Observou as gotas de luz que respingavam a sua frente. Milhares de pequenos pontos luminosos espalhados pela geografia do morro. Bateu o pó das sandálias com as mãos. Notou que uma das fivelas já dava sinais de desgaste, logo arrebentaria. Notou pequenos cortes no calcanhar. Notou os calos nos dedos da mão. Estendeu-a, deixando-a entre seu rosto e as luzes da favela. Observou nas costas da mão as veias saltadas. Podia sentir o sangue que lhe corria cansado. Virou-a e observou sua palma. As linhas desenhadas pela biologia disputavam espaço com as cicatrizes de farpas de madeira. Na lida diária, Genésio era operário na obra de grande edifício, um desses arranha-céus que Genésio só subirá enquanto houver andaimes e pontaletes a sustentar a estrutura que mais dia, menos dia, ganhará também um sem fim de luzes salpicadas pelos trinta e dois andares. Andares pelos quais Genésio não andará mais. Quando estiver pronto, dizia o encarregado da obra, um engenheiro gordo de pele oleosa e pastosos cabelos grisalhos, quando estiver pronto aqui só vai frequentar bacana. Genésio, que não tem onde cair morto, não acreditou quando alguém lhe disse quanto custava cada torneira chiquetosa, daquelas automáticas, que Jordão, um dos encanadores, instalaria nos quarenta e sete banheiros. Genésio não frequentou a escola, logo não sabia multiplicar. E, sejamos francos, nem precisava. O preço unitário de cada torneira em si já ultrapassava a soma que ele ganhava em cada mês de labuta na grande obra. Solteiro, Genésio vivia num canto do barraco do seu Nazaré, canto que lhe custava quase a metade do salário. Preto, pobre, analfabeto e, como dizia Dona Madalena, feio como um satanás, Genésio não via poesia nas luzes que salpicavam aquele cair de noite no morro. Enquanto olhava sua mão estendida a sua frente, pensava admirado, como pode uma torneira custar tanto! Fazia no ar movimentos de torção, como quem girasse uma torneira imaginária, sem saber que no caso daquelas pequenas fortunas, não era necessário girar, bastava deixar as mãos a sua frente e a água vinha como por mágica. Jordão tentou explicar-lhe, mas Genésio só conhecia torneira de girar, daquelas que gotejam a noite toda, daquelas que rangem e emperram dia sim, dia também. Torneiras automáticas de mais de mil reais eram coisas que estavam muito além da compreensão de Genésio. Na manhã seguinte, antes mesmo do gole de café-com-leite e um filão com manteiga que a empreiteira oferecia aos operários, Genésio intimou Jordão: quando estiver instalada, você me mostra? Jordão baixou os olhos, resmungou que sim mesmo sabendo que naquela tarde o engenheiro gordo de pele oleosa e pastosos cabelos grisalhos iria demitir trinta e cinco operários, inclusive Genésio, cujas mãos grossas, ásperas, calejadas já não eram mais necessárias. Seu Nazaré pôs anúncio na venda do velho Pedro, vagou um canto. Dona Madalena achou uma sandália arrebentada perto do tanque. A torneira gotejava pequenas lágrimas…

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Meninos Insanos…

Naquela época, corríamos feito loucos pelos trilhos da ferrovia. Longe dos olhos e das tecnologias, no limite da molecagem, pegávamos rabeira no trem. Do pontilhão próximo à antiga Villares, seguíamos até os fundos do Shopping Sorocaba, uma viagem cheia de aventuras. Não sabíamos o que significava a palavra adrenalina, apenas a tínhamos correndo pelas veias. Insanos, dia desses vi uns meninos insanos pegando rabeira no trem. Ah, a velhice nos atinge em cheio. Ou seria a covardia? Trinta e tantos anos depois, eu, no conforto do ar condicionado do carro, ouvindo um velho rock, observava os meninos dependurados, cabelos ao vento, sem o menor pudor, sem o menor cuidado. Menores vivendo suas vidas intensas de adrenalina, ainda que eles sequer saibam lá o que isso signifique. Insanos, pensei. Como éramos insanos, como são insanos. Me lembro de que lá do alto dos trilhos, agarrado ao vagão, vagávamos olhado os carros que nos olhavam. Em algum momento, ainda que a minha memória falhe, vislumbro o olhar de um homem que prestava atenção em mim, um olhar do conforto do seu carro, ouvindo um rock bem recente, talvez sem ar condicionado. Aquele homem que me mirava nos tempos da meninice agora me mira do alto da sua rabugice. Insanos! Ainda que os tempos fossem outros, sem centenas de canais de TV, sem gigabytes de informações, sem redes sociais, éramos inconsequentemente insanos. Como diz meu irmão mais velho, somos sobreviventes. Apesar de tudo, sobrevivemos. Difícil não olhar para trás com um certo saudosismo, éramos insanos, éramos felizes. Depois do passeio clandestino, uma tubaína dividida em seis copos e lanches de mortadela num bar qualquer, ao lado de bêbados inveterados e um dono de boteco mal-humorado. Sobreviventes, não sei quem são aqueles meninos insanos que vi dependurados no trem. Serão felizes? Sobreviverão? Quem sabe, um deles, lá na frente, seja um terráqueo a escrever suas crônicas. Quem sabe um deles seja publicitário, sambista, bancário, caminhoneiro ou, quiçá, seja assassinado com tiros na frente de um bar. Difícil olhar para o passado apenas com olhos marejados pelos bons tempos. Bons, com certeza, porém insanos. Arrisco dizer que o homem que me olhava de dentro do seu carro naquelas tardes juvenis e o menino que hoje se dependura insanamente no trem que corta a minha visão são a mesma pessoa. O tempo perde o sentido nas memórias, são os sentimentos impressos com tinta de adrenalina nas veias que dão o tom dessas memórias insanas. Insanos…

Bom banho…

Para mim, o dia não começa sem um café e um bom banho. Diferente do café, que pode ser qualquer um, o banho tem que ser dos bons! É que café é aquela coisa, como diz o David Lynch, qualquer café é melhor que nenhum café. Já o banho, ah, o banho não. Qualquer banho não serve. Não pode ser nem daqueles banhos de ecologistas nem daqueles felinos, de gato. Sem um bom banho a cabeça não funciona. Eu, por exemplo, depois que me levanto, sigo direto para o banheiro. Giro a torneira e deixo a água fluir pelos dedos. A temperatura da água é fundamental. Não basta por o cerebelo para funcionar, é preciso irrigar as áreas adormecidas do cérebro. A água, se muito fria, faz do banho arte de contorcionismo, o corpo se retorce e o ar me falta. Não dá pra pensar. Por isso o banho frio é minha escolha quando quero livrar a mente de qualquer coisa. Banho frio é profilático mental, mas o corpo reclama. Já a água muito quente é anestésica, faz o corpo amolecer feito macarrão que passou do ponto, e a moleza do corpo amolece as ideias. Banho bom é com aquela água morna: a temperatura certa para confitar as ideias. Pois, para mim, banho bom é um ato criativo. Enquanto os dedos massageiam o couro cabeludo, a cachola fica em polvorosa. Mil ideias surgem durante o banho. As mais bobas escorrem para o ralo feito a espuma do xampu. As que ficam ganham brilho e força, da raiz até as pontas. É no banho, ou melhor, num bom banho, que tenho boas ideias para minhas crônicas. É, também, no bom banho matinal, que surgem ideias para aulas ou aquela solução para um problema que atormentou o sono. Enquanto esfrego os sovacos com sabonete, penso no tema de um novo texto. A espuma que escorre por braços e pernas mostram as possibilidades de desenvolvimento do enredo. Nas gotas que correm pelo vidro do box vejo personagens. O bom banho é uma viagem para dentro de si. A fluidez da água pelos contornos do corpo, da cabeça aos países baixos, das mãos aos pés, em cada fio de cabelo lava não apenas o físico, mas dá à alma o frescor de um novo dia. Fechada a torneira, o barulho residual do gotejar do chuveiro deixa em aberto o desfecho. É que um bom banho é apenas o começo do dia. Enrolado na toalha, sigo para a cozinha, afinal, não esqueçamo-nos do café. Entre um gole na caneca fumegante e um gota d’água que ainda me escorre dos cabelos, abro o computador, pois é preciso colocar as ideias nos bits e bytes do teclado, antes que evaporem.

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Ponto final…

Esse ônibus passa na policlínica, perguntou-me a senhora de cabelos brancos e bengala. Antes que eu pudesse dizer que não sabia, uma outra senhora de cabelos brancos respondeu, passa. Aos poucos, vários senhores e senhoras idosos lotaram os bancos. Aqueles mais dispostos, seguiram em pé, assim como eu. Minha mochila foi para o meio das pernas, para não ocupar o espaço que a cada minuto de espera, tornava-se mais escasso. Por fim, ônibus lotado, deixamos o terminal. Eu arriscaria dizer que oitenta porcento das pessoas naquele coletivo estavam acima dos sessenta anos. Ao longo do caminho, mais uns sete ou oito idosos embarcaram. A pergunta inicial, se ele passava na policlínica, fez sentido. Sem fones de ouvido, eu pude ouvir os relatos, as reclamações, os diagnósticos e até mesmo qual medicação é melhor indicada para esta ou aquela dor. Entre assuntos medicamentosos, uma ou outra louvação. Deus e remédio talvez tenham sido as palavras mais ouvidas por mim. Talvez porque sejam sinônimas. Talvez por que uma delas seja o placebo. Devagar, entre trancos e freadas, o coletivo seguiu por ruas que me eram conhecidas. Pude notar fachadas novas, casas que deram lugar a pequenos edifícios, novos comércios e alguns terrenos baldios, desses bons para mandar alguém carpir. Enquanto a audição deleitava-se com o universo vocabular das senhorinhas, umas doces como as vovós dos contos de fadas, outras rabugentas como só uma vida sofrida sabe modelar, os olhos capturavam imagens de uma cidade que sempre foi minha, na qual sempre fui um andarilho. Imerso nesse misto de sons e imagens, o coletivo chegou a tal policlínica, que outrora fora o hospital para o qual eu fui levado quando fui atropelado. Memórias, os aromas da infância, da adolescência, dos primeiros anos da juventude, todos misturados às colônias de alfazema, desodorante Avanço e suor. O ônibus quase que esvaziou, ficamos eu, o motorista e mais uns dois ou três rapazes com pastas nas mãos. O ponto final da linha é na prefeitura, logo, da policlínica até o palácio dos tropeiros, iriamos apenas nós, uma meia dúzia de gente que seguiu silenciosa, cada qual no seu banco. Os olhos ainda escrutinavam a cidade, mas os ouvidos tinham agora apenas os rangidos metálicos do coletivo. Na boca, um gosto amargo se fez intensificar.

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Doutor Paranhos…

O problema com os médicos é a especialização. Da clínica geral à escolha de uma especialidade, algo se perde: o humano. No fim das contas, deixamos de ser quem somos e passamos a ser apenas um punhado de pulmões, corações, ossos, pés, peles ou visículas. A mente do Paranhos navegava em pensamentos difusos sobre a prática médica quando o interfone tocou pela quarta vez. Dr. Paranhos, a paciente continua aguardando. Mande-a entrar, disse Paranhos ajeitando o colarinho. Bom dia, doutor. Bom dia, dona… dona… Elisete, doutor. Ah, sim, dona Elisabete, pois não, o que sentimos hoje? Me dói o peito, doutor. O coração. Dr. Paranhos, Juca do Limão nos tempos da faculdade de medicina, decidiu ser menos especialista. Diante de dona Elisete, teve um rompante de humanismo. Aconetceu algo, dona Elisabete, que pudesse desencadear essa dor? Dona Elisete não entendeu a pergunta. O peito lhe doia, o coração batia de forma estranha, como poderia ela saber o que lhe passou com o coração? Não era ele o cardiologista indicado pelo plano de saúde? Não sei, doutor. Paranhos levantou-se e contornou sua mesa, colocando-se ao lado da ressabiada paciente. Pondo a mão em seu ombro esquerdo, perguntou, como andam as coisas em casa, dona Elisabete? Sem saber ao certo o que dizer, dona Elisete disse que Joaquim, o marido, havia morrido. Por deus, dona Elisabete! Paranhos tomou-lhe as mãos em sinal de respeito e deu-lhe os pêsames. Mas morreu de que o seu Joaquim? Bactéria, disse ela sem saber ao certo de que mal sofria aquele médico. Bactéria? Paranhos rodopiou sobre os calcanhares e afastou-se de dona Elisete. Qual bactéria, perguntou enquanto tentava atrapalhadamente abir o frasco de alcóol gel promocional que o último representante de laboratório deixará em seu consultório. O peste, doutor. Peste? Paranhos não sabia o que pensar. Teria ele perdido algum noticiário? Logo ele, viciado em telejornais! Peste? Seria mais uma daquelas enfermidades que pulam dos bichos para os humanos? Peste, mas que peste, dona Elisabete? Bactéria era um marginalzinho das redondezas do Capão, bairro rural no qual dona Elisete vivia desde seus catorze anos. Lá conheceu Joaquim. Lá casaou-se com Joaquim. Lá descobriu que Joaquim não valia nada. Joaquim se acabou nos vícios: a bebida, o jogo e os rabos de saia. Há dez anos que dona Elisete havia desestido do marido. Ignorava suas traições. Ignorava suas bebedeiras. Ignorava o jogo do bicho. Devotou sua vida a Jairzinho, o único filho, estudante de direito na capital. Com muito custo, dona Elisete fez o pequeno roçado de leguminosas render o suficiente para ver o menino ter um futuro melhor que o dela, melhor que o de Joaquim, cujas dividas de jogo não foram esquecidas por Bactéria. Dona Elisabete? Dona Elisabete? Paranhos notou que a paciente estava em outro mundo. A morte do marido, na certa, havia abalado aquela pobre mulher. Mal sabia Paranhos que dona Elisabete, digo Elisete, quando soube da morte matada de Joaquim, abriu a cidra que tinha na geladeira desde o último natal e deleitou-se com uma pequena embriaguez. Desculpe, doutor. O que o senhor disse? Dona Elisabete, sua dor no peito nada tem que ver com a cardiologia, mas com a ciência da alma. Dona Elisete não ouviu a última parte, as pontadas no peito a fizeram perder a cor.  Paranhos a serviu um copo de água. A ciência da alma, os problemas de dona Elisabete eram de outra ordem. A tristeza pela perda do homem amado, do companheiro de uma vida, foi o diagnóstico. Vou encaminhá-la para o Figueira, psicólogo e amigo dos tempos em que Juca do Limão era o centro das atenções nas festas universitárias da faculdade de medicina. Figueira há de tratar dessa dor, dona Elisabete. Elisete. Quem? Elisete, doutor. Com o papel timbrado com o pedido de encaminhamento, dona Elisete, sem saber de suas dores, caminhou até a recepção. Paranhos despediu-se não sem antes dizer uma frase de animo à paciente. O universo conspira, dona Elisabete. Elisete, disse a recepcionista. Sim, sim. Paranhos acenou com a cabeça enquanto fechava a porta. De volta a sua mesa, Paranhos sentiu-se feliz por ter se desprendido da frieza da especialização. Não, ali não havia apenas um coração. Ali havia uma mulher cheia de vida, de história, de sentimentos. Quarenta e cinco minutos depois, o corpo de dona Elisete dava entrada no necrotério municipal. Infarto.

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Pequenópolis…

Acho que aconteceu em Pequenópolis, interior do Mato Grosso. Um meteóro atingiu o solo no meio da madrugada. Apenas seu José e dona Maria, agricultores locais viram o fato. No meio do milharal, uma certa luminosidade fez seu José pegar a velha carabina 22. Dona Maria correu buscar o terço, benzeu-se e pos-se a seguir os passos do marido. No meio da clareira de pés de milho retorcidos, uma estranha bolota de metal brilhante. Dentro dela, uma criança branquela de cabelos pretos e imensos olhos azuis, envolto num manto vermelho. Seu José achou que fosse obra do tinhoso e descarregou a 22 sem dó.  Dona Maria gritou, Valha-me Deus! Vendo que o menino continuava sorridente em meio a bolota metálica, Dona Maria fez o sinal da cruz, rogou ajuda a Jesus e São Francisco, de quem era devota fervorosa, e cuspiu a saliva santa na cara do cramunhão-menino. A bolota de metal fechou-se, escondendo o chororô do filhote de cruz-credo. Um zumbido estridente fez com que seu José e dona Maria caíssem para trás. Dona Maria cobriu o rosto invocando a proteção de Nossa Senhora a Virgem Maria, sua xará. Seu José ainda conseguiu dar mais um tiro com a garrucha que sempre levava presa na cintura.  A bolota deixou um feixe de luz que foi visto por toda a Pequenópolis, acordada com os tiros e o zumbido. 30 anos depois, já beirando os 97 anos, no balcão do bar do seu Onofre, segurando sua dose de pinga, seu José ainda conta a história do cramunhão-criança, o filhote de cruz-credo que levou 12 tiros de carabina, uma cusparada purissantificada de dona Maria – que Deus a tenha – e ainda assim saiu, palavras do seu José, avuando pelos céus. Na mesa ao lado, Carlinhos, neto de seu José e de dona Maria, lê em seu tablet sobre o tal Homem de Aço que apareceu, palavras de Carlinhos, lá nos istêitis!

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Energético…

O cartaz dizia, de R$ 4,95 por R$ 0,66. Não, você não leu errado. Nem eu. O produto em questão era um energético. 310ml, sabor pêssego. Pêssego? Sim, pêssego. Puxa, sessenta e seis centavos! O que custa sessenta e seis centavos nessa vida? Ai tem, pensei! Verifiquei a validade, vencerá daqui três meses. Noventa dias! Vamos levar. Um? Não, lógico que não. Vamos levar duas caixas. Energético sabor pêssego. Duas caixas, dezesseis latas. Da prateleira para o carrinho, do carrinho para o caixa, do caixa para o carrão, do carrão para a geladeira. Uma lata? Não, lógico que não. As dezesseis latas dividindo espaço com a margarina e a geléia de morango. Quente deve ser ruim, vamos esperar. Esperei, fui fazer minhas coisas. Recolhi a roupa do varal. Lancei algumas notas da universidade. Joguei duas ou três fases do Angry Birds. Já deve ter gelado, oba! Abri a lata, tsss. Tem cheiro de pêssego, ou parece ter. Desde o natal não como um pêssego. Tem cor de pêssego, que é meio cor de laranja, que é outra fruta. Bem, sem mais delongas, dei aquela golada digna de comercial de refrigerante norte-americano. Quente deve ser ruim? Eu me enganei. Quente deve ser horrível, pois gelado era ruim. Amigo leitor, amiga leitora, pare de rir. Deve ser o primeiro gole, a boca ainda trazia o gosto do almoço, um hamburguer de fast-food. Segundo gole, JESUS! Jesus, o messias, não o guaraná cor-de-rosa, que diga-se de passagem, é ruim, mas o energético sabor pêssego é pior. Senhor da glória, lembrei-me de uma das coisas mais horrendas ao paladar que eu já havia provado nesta vida de perdição. Daime, o chá. Chá de Santo Daime. Certa vez, nos tempos da faculdade de Filosofia, uma amiga me convidou a beber o chá. Acesso garantido a mundos fantásticos, ela disse. Eu, cético, recusei. Na minha ignorância, o chá era coisa de ritual religioso, mas ela negou, nada tem que ver com crença, Edgar, o Daime te leva para as ruas de Atenas, ela mesmo alegava conversar com Platão. Platão? Sim, Platão, dizia ela. Em grego? Grego? É, você fala com ele em grego? Não, em português. Ah… Convencido a deixar meu ceticismo de lado, fui ao tal do Santo Daime. Depois de algumas orientações e meia hora de cânticos, chegou a hora de pegar a fila para provar o néctar da ayahuasca. Jesus Cristo! Pense numa água cor de barro que corre pela sarjeta em dia de chuva. O gosto era algo indescritível até alguns minutos atrás. Bem, desnecessário dizer que não encontrei Platão falando português. Acho que eu sou imune ao chá de Santo Daime, se fosse chá de fita, quem sabe… Chá de fita? Sim, chá de fita. Fita K7, ou cassete. BASF era a preferida. Se fosse Chromo 90 minutos, melhor ainda. Eu tinha uns amigos de infância, digo, adolescência, que bebiam chá de fita. O que é que tá gravado nessa ai? Def Leppard. Não, Def Leppard não dá barato, vamos de Grateful Dead, essa sim! Desenrolava-se a fita, colocava-se a fita numa infusão de água quente e depois de quinze minutos, a caneca era compartilhada entre todos. Desnecessário dizer que esses meus amigos devem estar todos mortos. Eu sempre fui cagão, tinha medo de ficar loucão com o chá de fita. Alias, sempre fui cagão para qualquer droga. Ok, álcool é droga, e eu sempre fui chegado numa birita. Mas no máximo flertei com um lança-perfume. Mas já me caguei todo quando um colega, misturando clorofórmio com sei lá o que, derrubou a coisa toda no olho e perdeu a visão. Dai em diante, o chá do Santo Daime foi a minha maior estripulia além do álcool. Mas o chá me decepcionou, nada de ver Platão, unicórnios ou a Magda Cotrofe nua se insinuando e desejando-me – se bem que eu acho que a Magda Cotrofe era dos tempos do chá de fita. Energético de pêssego, o famigerado energético de sessenta e seis centavos, dezesseis latas. Bem, quatorze, na verdade, esta que eu estou tomando enquanto digito esta crônica é a segunda. O negócio é ruim, ruim demais. Acho que vou abrir mais uma. Platão não para de se gabar (em português). Magda Cotrofe colocou uma playlist do Grateful Dead no Spotify e está se esfregando no Platão enquanto um unicórnio está mexendo na geladeira, perguntando se a geléia de morango é diet. Maestro, solta o maracá. Treme a terra, treme a terra. Treme a terra e geme o mar…

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Maria

Maria é minha aluna. Sua mãe fez das tripas coração e segurou as pontas quando o pai desapareceu no mundo. Maria trabalha das 8h às 18h, pega no pesado na linha de produção. Acorda às 5h para ajeitar a casa. 7h está no ponto de ônibus. 18h45 ela chega à faculdade. Maria é minha aluna e se meteu a estudar. Sem diploma, o salário é baixo. A vida é dura. Maria chega para minhas aulas com fome, com sono, sentindo-se suja, feia. O papel de enxugar as mãos do banheiro da faculdade lhe serve de banho. A fome mata-se com um pacote de Fofura, barato, o dinheiro de um salgado faz falta no fim do mês. Maria perdeu minha prova. Choveu e o ônibus atrasou. Na anterior teve 4,5. Não estudou, passou a madrugada com a mãe no hospital. Sábado a classe vai visitar uma empresa, aprender como funciona a produção. A produção onde Maria trabalha. Mas sábado é dia de Maria cozinhar para gente fina. O bico de cozinheira no restaurante paga o xerox, o Fofura. O salário da fábrica vai todo na faculdade. Maria não levantou a mão quando perguntaram quem iria participar da formatura. Baile, vestido, fotos, Maria não pode. Na última aula Maria me disse que está com medo de pegar DP. Me perguntou se tinha algum trabalho para ajudar na nota. Eu disse, damos um jeito, Maria. Enquanto isso, noutro canto da cidade, Cauã escreve no seu facebook, debocha de aluno de “uniesquina”. Ele não conhece Maria. Mal sabe ele que o filet mignon ao molho madeira que ele come todo sábado é ela quem faz. Mais um semestre começa. Marias, Josés, Cauãs…

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