Epopéia Berinjélica

Seu nome era Cássio, ou Tássio. Tarso talvez, eu não me recordo bem. Já tive tantos alunos, tantos nomes diferentes. Acho que era Cauê, ou Cauã. Difícil saber, não tenho registros documentais desse momento. Pois bem, ele teria os seus doze ou treze anos quando sua mãe me ligou em resposta a um anúncio nos classificados do jornal. Aulas de informática? Sim. Particulares? Sim. E o que se aprende nessas aulas? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Basic e Pascal, senhora. Do outro lado da linha, um silêncio. Aquele amontoado de palavras parecia conversa de iniciados em alguma sociedade secreta. Quantas vezes por semana? Duas. Qual o valor? A mensalidade é de 50 URVs – eram os anos de transição, mais um pacote econômico, os cruzados novos ficavam antigos e davam lugar às Unidades Reais de Valor, predecessora do Real. O que ele vai aprender mesmo? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Quick Basic e Turbo Pascal – acrescentei duas palavras novas para ser mais enigmático ainda. Três dias depois, em horário combinado, o menino apareceu. Para ser mais preciso, o menino cujo o nome me foge, chegou com o motorista particular. Desceu, entrou no pequeno cômodo que abrigava dois IBM-PC, um PC-AT 386, um MSX 2.0 todo hackeado e um Commodore Amiga 500 ligado a um monitor VGA saído de um filme de terror. Estendi a mão para cumprimentá-lo, ele estendeu-me o cheque, a primeira mensalidade, 50 URVs convertidas ao valor do dia. As aulas seguiram-se por alguns meses e, para a minha alegria, os cheques também. Eram tempos curiosos, eu tinha dezoito anos, cinco anos a mais que o pequeno sem nome, mas o tempo voava. Vencemos o DOS, o Wordstar, o Lotus 123 e caímos no admirável mundo novo das linhas de código, as variáveis, laços de repetição. O primeiro programa foi um jogo de forca. O enforcado era um conjunto de caracteres. Se o jogador errasse a palavra, a cabeça, que era uma letra o maiúscula, se transformava num asterisco. O garoto levava jeito para a coisa. Certa vez ele me disse, você pode ir lá em casa? Seu pai havia comprado um computador novo, perguntou se eu poderia ir lá, instalar. Embora o menino pudesse fazer isso sozinho, acredito que o pai não acreditava que o seu moleque de treze anos pudesse realmente fazê-lo, tantas URVs investidas em tantos meses e a pouca idade ainda pesava contra. Talvez fosse receio de que um cabo ligado errado resultasse em prejuízo, computadores nessa época eram muito caros se comparados com os de hoje em dia. Viviam em um luxuoso apartamento no centro da cidade. O pai era médico. A mãe eu não sei o que fazia, arquiteta talvez, mas eu nunca soube. O motorista foi me buscar em casa, me senti um lorde. O senhor usava quepe. As únicas pessoas que usavam quepes que eu conhecia eram policiais, como o meu pai. Fui recebido como um mago, o guru dos computadores. O pai foi extremamente gentil, mesmo quando soube que eu tinha dezoito anos e que estava terminando o ensino médio. Nerds, ouvi a mãe dizer em voz baixa para o marido. Desempacotamos o computador. Monitor, CPU, cabos, teclado, mouse. Deixei tudo sobre a mesa e, sob o olhar atento do pai e da mãe, disse ao garoto, quer montar você? Os olhos dele brilharam! Sempre me dirigindo um olhar de confirmação antes de conectar cada coisa, o menino ligou todos os componentes e em poucos segundos o cursor da linha de comando do MS-DOS piscava na tela do monitor VGA, infinitamente melhor que o meu. Juntos, instalamos todos os programas que ele aprendeu a usar no curso. A mãe sorria feliz de ver que as URVs tinham sido bem empregadas. O pai, tenho certeza, pensava o óbvio, quem montou o computador foi o filho, mas eu ainda assim cobraria pelo apoio espiritual. Antes de me despedir e receber o último cheque, agora acrescido da visita técnica, a mãe, educadíssima, me perguntou, fica para jantar? Eram quase 18h e eu ainda seguiria para a escola, terminar meu ensino médio. Jantar? Claro! Amigo leitor, amiga leitora, nem tudo nessa vida são flores. Sentamo-nos todos à mesa. O pai me serviu um copo de suco de maracujá. Natural! Nada de suquinhos em pó. A mãe apareceu com uma grande bandeja, berinjelas à parmigiana. BERINJELAS. BE-RIN-JE-LAS. Ciente de que teria de manter a pose e não fazer feio na frente de gente tão gentil, mirei na menorzinha, afinal, dos males, o menor. Falhei, a maior berinjela me foi imposta, eu era visita. Eu não gosto de berinjela. Gosto de queijo, gosto de molho de tomate, mas aquela mastodôntica berinjela era um nó górdio. Contrariando a minha visão de mundo, todos naquela casa não apenas gostavam de berinjelas, eles adoravam. A primeira garfada foi cruel. Meio copo de suco para fazer descer a leguminosa maldita. Puxei o queijo de lado, deixá-lo-ia para o final, para tirar da boca o gosto berinjélico. A segunda garfada fez secar o que restava do suco. Mais um copo, Edgar. S’il vous plaît, Mademoiselle. E assim, de meio copo em meio copo de suco, a berinjela foi toda para o bucho. O queijo do final não ajudou, estava impregnado de berinjela. Um gole final de suco, dei a desculpa que eu teria prova e não poderia me atrasar. Despedi-me imensa e felizmente agradecido pelo delicioso jantar. O motorista foi cortesia apenas para a ida. No meio do caminho comprei uma água tônica e fui fazendo gargarejos até chegar na OSE. Vendo meu semblante de poucos amigos, Moura, o bedel, perguntou, e essa cara de quem comeu e não gostou? Sentei-me no degrau da escada ao lado da sua mesinha e contei a minha epopeia berinjélica. Até hoje posso ouvir as risadas do Moura…

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Colônia de Férias

Colônia de férias. Peruíbe. Passávamos o Natal e o Ano Novo na colônia de férias. Mamãe passava o ano inteiro na cola da moça do sindicato para conseguir dez dias de paz e sossego à beira mar. Pensão completa. Café-da-manhã, almoço e janta. E no natal, ceia. No ano novo também. E uma lata de um quilo de goiabada, mas essa era meu pai quem levava. A colônia de férias era um território de ninguém para a molecada. Gente de todos os lugares. Gente de São Paulo, gente de Ribeirão Preto, gente de Pindamonhangaba, gente de Bauru e gente de Sorocaba. Eu, o leite-quente. Poucas horas depois de desfazer as malas, após longas horas de estrada espremidos num Fusca, nos primeiros diálogos com outras gentes, lá na sala de jogos, o apelido leite-quente vinha com vigor. Fala leite quente. LeitE quentE. O ê acentuado, com circunflexo, característico da herança tropeira, era diversão e chacota nos ouvidos paulistas acostumados com o leiti quenti. Chacota que era revidada com traquinagens que deixariam o Pedro Malasarte no chinelo. Pela manhã, café-da-manhã até o pandú fazer bico. Durante o dia, praia. Pausa para o almoço, um breve cochilo e, praia de novo. À tardinha, como dizemos em Sorocaba, banho e janta. À noite, sala de jogos. Pingue-pongue. Bilhar. Rouba-montes. Traquinagens. Na surdina, enterramos a botina de um moleque da capital no playground. Um pé só, o direito. Deu de chover a noite toda. Na manhã seguinte, descobertos, desenterramos a botina. Encharcada. Nem sempre as artes dos Malasartes ficavam no anonimato. Éramos crianças e a internet ainda não havia sido inventada. Na antevéspera do natal, enquanto eu tomava uma minha fumegante xícara de café com leite e deliciosas fatias de filão com manteiga e mel, Pompeu desembarcava do Del Rey zero quilometro. Do porta malas espaçoso, dezenas de malas e pacotes de presentes. Um deles, por razões óbvias sem papel de embrulho, uma bicicleta importada. Com amortecedores. Veja bem, hoje em dia isso é carne de vaca, mas nos idos de 1985, bicicleta com amortecedor era pura ostentação. Pompeu trajava meias de seda, mocassim, bermudas de sarja, camiseta polo e um pulôver sobre os ombros. Praticamente um cosplay anacrônico do João Dória. Tudo naquela visão destoava das minhas havaianas gastas, sunga do Incrível Hulk e camiseta regata. Pompeu sumiu pelas escadas, seguido pelos pais e pela irmã. Desnecessário dizer que os pais de Pompeu pareciam saídos de um filme hollywoodiano dos anos 40. A irmã era exatamente igual ao Pompeu, inclusive no buço salpicado de pelos, mas de vestido. Não os tivesse visto juntos, diria que Pompeu e a irmã eram a mesma criança inovando no cross-dressing. O dia seguiu na normalidade. Praia, almoço, soneca, praia, banho e janta. Pompeu, de calção de banho e bóia inflável colorida, apareceu após o almoço, no turno praiano da tarde. A gente levava uma câmara de pneu caminhão Fenemê como boia. Pompeu, para refrescar-se, bebia refrigerantes em lata. A gente levava um garrafão térmico de cinco litros com Q-Suco de uva. Meu dias em Peruíbe eram um episódio do Chaves em Acapulco, antes mesmo de Chaves fazer sucesso. A mãe de Pompeu, dona Pompéia no imaginário da molecada, usava um maiô metálico, óculos de sol maiores que os para-brisas do Fenemê de onde tinha vindo a nossa bóia e um chapéu de dondoca. Fumava cigarros chiques com aquelas piteiras que a gente via em algum episódio do Pica-Pau, quando se vestia de mulher. O pai, Pompeuzão, era o próprio Clark Gable de ceroulas de corte italiano e lenço de seda amarrado no pescoço. Na véspera de natal, durante o café-da-manhã, Pompeu estreou o seu presente, a bicicleta importada com amortecedores. Subiu nela, deu duas pedaladas e passou por todos com seus ar aristocrata, pedalou com mais intensidade em direção a uma elevação do gramado e… bum! A roda dianteira foi para um lado e Pompeu, impulsionado pelos amortecedores, voou para o outro. Caiu de boca nos ladrilhos de concreto. Estatelou-se. A mãe teve uma síncope. O pai gesticulava freneticamente, ora olhando para a bicicleta retorcida, ora olhando para Pompeu semi-banguela. A irmã ria. Ria copiosamente. As pessoas ao redor da cena, segurando seus apetrechos praianos, desviavam do pequeno e todo esfolado Pompeu. Alguém pisou em algo e exclamou. Era um pedaço de dente. Dente do Pompeu. Naquele mesmo dia, à tardinha, o Del Rey zero quilometro deixou o estacionamento da colônia. Perderam a ceia. A noite, na sala de jogos, empanturrados de chester panetone, alguém perguntou, e o Pompeu? Silêncio. Todos sabiam que Pompeu fora vítima de uma sabotagem. Alguém havia afrouxado as porcas que prendiam a roda dianteira da bicicleta importada com amortecedores. Alguém. Quem? Do canto da sala, calçando uma botina estrupiada no pé direito, alguém disse: leite-quente.

Neno…

Neno era o nome do moleque chato que vivia na casa ao lado. Nome não, apelido. De fato, eu nunca soube o seu nome. Neno. Pirralho de cabelos desalinhados, roupas mal cuidadas e dentes manchados de cárie. Neno vivia correndo pelas calçadas com alguma bugiganga que coletava nos ferros-velhos do bairro. Nessa época éramos todos, de algum modo, moleques chatos. Estávamos nas férias escolares e nos juntávamos na praça para brincar e brigar. É que a brincadeira, nessa fase, sempre vira briga, ainda mais quando o Neno estava por perto. Havia quem quisesse socar a cara dele apenas e tão somente pelos eu olhar insolente. Certa vez, a mãe do Neno nos chamou para jantar na casa deles. De fato, eu nunca soube se aquela mulher de traços duros era realmente a mãe do Neno. Eles moravam nos fundos da quitanda do Paulo. Paulo trazia muambas do Paraguai e as vendia em meio às frutas e hortaliças. Paulo era o nipônico mais brasileiro que eu já conheci, mas isso fica para uma outra crônica. A casa do Neno era uma casa pobre. Móveis rebentados, paredes descascadas. Sentada no canto do sofá, Emília. Irmã do Neno. De fato, se ela era ou não irmã do Neno, eu nunca soube. Emília, apesar de muito jovem, parecia já ter vivido muitas vidas. Tinha sardas que se espalhavam sobre o nariz e as maçãs do rosto. Tinha os dente igualmente manchados de cáries, como os do Neno. Tinha, também, marcas roxas nos braços. Ali, sentada no canto do sofá, vestida com uma camiseta de campanha política vários números acima do seu e com uma almofada sobre as coxas, Emília corou ao me ver entrar na modesta casa. Sua mãe lhe disse, Emília, levanta e cumprimenta o amigo do Neno. Neno riu, nem de longe éramos amigos. Emília delicadamente meneou a cabeça enquanto sussurrava para a mãe, não posso, estou só de calcinha. Eu apenas acenei a ela com a mão, ela apenas me sorriu um meio sorriso. A mãe entregou à Emília um prato cheio de comida. Vocês dois pegam a comida no fogão, disse-nos enquanto sumia no corredor que levava a um outro comodo. Neno foi primeiro, encheu o prato, sentou em frente ao antigo televisor, numa banqueta de madeira, e desligou-se do mundo. Coloquei duas colheres de arroz e uma outra de algo que até hoje não sei dizer o que era. De fato, era carne, mas só deus saberia de quê. Sentei-me no sofá, na ponta oposta à Emília. Na TV, um desenho animado qualquer. Neno devorava sua janta sem tirar os olhos do aparelho. Eu, de cabeça baixa, remexia a comida no prato sem de fato comer. Emília comia com calma, deixando na borda do prato alguns pequenos pedaços de cebola. A mãe voltou do comodo, havia mudado de roupas. Trabalhava no terceiro turno de alguma fábrica fábrica. Saiu dizendo que havia sagu na geladeira. Neno não tirava os olhos do desenho animado. Emília deixou seu prato sobre o braço do sofá e, num salto quase ornamental, passou do sofá ao corredor que dava para o outro comodo. De dentro do comodo, Emília gritou, Neno, dá sagu pro seu amigo. Neno olhou para mim, olhou para a geladeira, tornou a olhar para mim e retornou ao seu hipnótico desenho animado. Levantei-me e fui ver a cara do sagu. Parecia bom. Voltava para a sala, perguntar ao Neno onde tinha um pote para por o sagu, mas parei diante do corredor. Emília, havia trocado de roupas e penteava os cabelos diante de um diminuto espelho. Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando-a. Ela é puta, disse Neno. Hã? O olhar de Emília encontrou o meu. O que você disse, pirralho? PUTA, gritou Neno. PUTA. Outro salto, quase ornamental, trouxe Emília para a sala. Neno olhou para ele, insolente. PU-TA. Ela pegou Neno pelos cabelos e socou-lhe a cara. O prato voou ao chão. PUTA, entre lágrimas, SUA PUTA. O segundo soco fez Neno sangrar. PUTA! Neno saiu correndo pelo corredor da quitanda e sumiu. Emília juntou os cacos do prato quebrado, ajeitou a banqueta e as almofadas do sofá. Dois filetes de lágrimas haviam borrado sua maquiagem. Ela abriu a geladeira, pegou uma colherada de sagu e me deu. Não tem pote, disse-me antes de sair pelo corredor da quitanda. Lá fora, na rua, um carro grande a esperava. Eu tinha 12 anos. Neno, 11. Emília, não mais que 16. Nunca mais os vi.

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Coisa de meninos…

Eram os últimos dias de dois mil e dezessete. Aline conseguiu um horário com a manicure e lá fomos nós. Como todo bom marido, fiquei à espera na saleta destinada aos bons maridos. Saquei meu e-reader e pus-me a ler minha leitura do momento, O Lobo da Estepe. Ao meu lado, um garoto de seus oito ou nove anos. É que a saleta dos bons maridos também é a saleta dos bons filhos. Eu com o meu e-reader, ele com o seu tablet. Nos olhamos por poucos segundos, tempo suficiente para entendermos que cada qual tinha o seu brinquedo e, portanto, nenhuma interação social era necessária. Como bom filósofo que tento ser, ao estilo Sartre, fiquei com um olho na tela do e-reader e outro no ambiente. São nesses espaços – além do banho, óbvio – que surgem boas ideias para crônicas. O garoto, mais comprometido com o seu tablet que eu com o meu e-reader, ignorava o palavrório da mulherada que entrava e saia. Algumas delas, enquanto aguardavam a máquina de cartões de crédito processar suas despesas, davam rápidas olhadas nas duas criaturas da sala de espera. Ah, os males da tecnologia, olha só esses dois, de caras coladas nas telas do seus dispositivos eletrônicos, pensou a moça de cabelos escovados. Uma outra, cujas as madeixas estavam protegidas por um saco plástico  – chovia lá fora –, cogitou que fossemos, eu e ele, pai e filho. A secretária, aquela que tudo sabe, fez que não com a cabeça. Santo Facebook, pensou o cabeleireiro, é o que salva esses pobres apêndices de hoje em dia. Antigamente eram aquelas revistas de variedade. Todo bom salão – ou consultório médico – tinha sua pilha de revistas. Os acompanhantes podiam matar o tempo folheando uma Contigo de Março de Mil Novecentos e Setenta e Três em pleno Mil Novecentos e Noventa e Nove. Mas não para nós, eu e o garoto estávamos aparados pela tecnologia, mas distantes do vazio das redes sociais. O Lobo da Estepe comigo, um jogo de ligar pontos com ele – sim, eu consegui espiar o que se passava na tela do brinquedo dele, coisa de meninos. De súbito, uma senhora, espalhafatosa, adentrou ao salão. Vinha com duas sacolas e uma voz de trombeta do apocalipse. Meninas, trouxe bolo! Dois! E anunciando a boa nova, esgueirou-se salão adentro. Tanto eu como o garoto paramos nossas atividades para contemplar a anciã chique-no-último. Dois bolos, eu tenho certeza que o garoto pensou o mesmo que eu: um para cada! Coisa de meninos. Quando o som da voz da velha senhora se perdeu, nossos olhares se cruzaram por mais um ou dois segundos. Com um leve arquear de sobrancelha esquerda, o semblante do pirralho deixou claro que ele também havia espiado a tela do meu brinquedo, cheia de letras monocromáticas e sem graça. Antes que eu pudesse lançar-lhe um olhar de desdém, a velha senhora reapareceu. É um de laranja e o outro é com aquela cobertura branca que vocês gostam. Um pra hoje e outro para amanhã, instruiu a dama dos bolos. E já sabem, né? O coro de meninas respondeu em uníssono: nenhum pedaço para corinthianos. O garoto congelou ao ouvir a réplica da velha senhora. Se der um pedaço do meu bolo para corinthianos, eu mato na paulada. O garoto entrevou-se na sua tela. Eu, que de futebol entendo apenas que a bola é redonda, já estava prestes a delatar o corinthianinho à minha direita quando a velha senhora parou diante de mim e, com voz de professora da quinta séria que tinha sido, questionou-me: você é corinthiano? Apenas pude balbuciar um não. Se for, eu mato na paulada, advertiu a dama dos bolos. Apenas pude balbuciar um segundo não. Então, virando-se para a secretária, aquela que tudo vê, completou: pode dar um pedaço pro moço. A senhora, com seu garbo e elegância, desapareceu pela mesma porta que chegara. Apenas o rastro do seu perfume Rastro e as risadas das meninas do salão permaneceram. O garoto havia escapulido também, aproveitou-se do meu interlúdio com a madame e foi-se para debaixo da saia da mãe, o sacripanta. Coisa de meninos…

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Madrid…

Depois de percorrer mais de seiscentos quilômetros de carro, parando em um pueblo ou outro, chegamos a Madri. Era tarde, mas ainda tívemos ânimo para andar um pouco e tomar unas copitas. Já passava da meia-noite quando finalmente nos instalamos no hostel. Da janela do quarto se podia ver o movimento dos carros na grande avenida de uma cidade que nunca para. Lá do alto do oitavo andar, pude ver que do outro lado da avenida havia uma tienda de guloseimas aberta. Decidido a comprar uns chocolates para suprir as cotas de energia que seriam necessárias para percorrer as ruas e os encantos de Madri na manhã seguinte, vislumbrei a possibilidade de por em ação o meu espanhol sem a supervisão dos meus primos ibéricos. Seria um vôo solo entre estranhos, sem a cumplicidade e caridade dos parentes frente ao meu portunhol do dia-a-dia. Desci pelo elevador e passei em frente ao sonolento recepcionista armado de meu buenas noches, que não reverberou diante da peleja deste com suas palpebras.  Já na rua, o ar frio de dezembro aqueceu minha incursão comunicacional. Atravessei a rua e caminhei alguns poucos metros até a porta da tienda. Li alguns dos cartazes colados no vidro com preços de chocolates e pastilhas de menta. Lá dentro, o vendedor me olhava desconfiado. Inspirei o ar gelado, ergi a gola do casaco e entrei triunfante e portando do meu melhor sorriso. Finalmente: ¡Buenas noches, caballero! Arqueando as sobrancelhas, o vendedor me devolveu o sorriro com um sonoro oxênti meu rei, brasileiro? Assim, onde a Ipiranga cruza com a avenida São João, terminou minha incursão solo pelo castellano. Raimundo era seu nome. Baiano de pai e mãe e como o nome já vaticinava, Raimundo era cidadão do mundo. Havia estado em mais cidades que a minha mente atordoada pelo inusitado encontro pode reter. Milão, Paris, Lisboa, Londres, Dublin, Berlin, Praga… Raimundo passou os primeiros três, dos vinte e dois que já levava na Europa, perambulando de emprego em emprego, de cidade em cidade. Dominava el castellano, arranhava o frânces, o inglês, o italiano e patinava no alemão. Alemão que ele julgou ser a minha língua quando me viu ainda fora da tienda. Meu rei, quando te vi entrando com essas alturas todas, pensei cá comigo, lá vem um lemão. E alemão é lenha de entender, segundo o meu amigo Raimundo. Tão logo notou que o gigante que ali estava de alemão não tinha nada, pulou para o lado de fora do balcão e me deu um daqueles abraços que a gente só dá em gente querida. Conversamos sobre sua trajetória. Vivendo a vinte a tantos anos no estrangeiro, fazia cinco anos que Madri era a sua cidade. Cidade onde seu filho mais novo arrumou uma esposa e lhe deu dois dos sete netos. O filho mais velho vivia na itália e o do meio voltou para a Bahia de Nosso Senhor atrás de um rabo-de-saia. Contei-lhe sobre a minha família e sobre meus avós, que em rota contrária, de Barcelona acabaram fazendo a vida numa Sorocaba que eu, tolo, julguei desconhecida para o internacional Raimundo. Sorocaba, meu rei? Ôxi, meu cunhado mora ali pertinho, em Itu, cidade das coisas grandes, segundo meu amigo Raimundo. Fiquei com medo de perguntar quem seria o seu cunhado, temendo que em algum momento o nosso colóquio nos revelasse que o mesmo fosse meu ex-aluno. Animado com a minha presença, saimos para o frio da calçada onde Raimundo acendeu um cigarro. Fuma, meu rei? Neguei. Faz bem, isso aqui ainda vai me matar. Entre uma tragada e outra, enquanto a fumaça traçava rodopios com a brisa gelada, Raimundo me deu algumas dicas sobre a cidade que ele conhecia tão bem. O ar frio contrastava com o calor daquela conversa. De volta ao interior da tienda, mostrou-me fotos dos meninos com a camiseta do Real Madrid – que meus parentes catalães não me leiam! Quando a conversa começou a ficar nostálgica demais, com os olhos embotados, Raimundo, fazendo jus ao seu comércio, finalmente perguntou em que ele poderia me ajudar naquela fria noite de dezembro. Uma garrafa de água, dois chocolates e um pacote de pastilhas de alcaçuz. Quando fiz menção de tirar a carteira do boldo, Raimundo interveio: é por conta da casa, meu rei. Depois de outro abraço caloroso, atravessei a rua com Raimundo às minhas costas, acenando sorridente. Antes de entrar no hostel, deixei que o ar frio inundasse meus pulmões numa longa inspiração. Olhei para o outro lado da rua e Raimundo já havia voltado para o seu lado do balcão e folheava um jornal qualquer. Na recepção do hostel, o atendente dormia sentado, com a cabeça pendida para trás, feito um iogue ou contorcionista. Passei em silêncio e deixei que o elevador me levasse ao merecido sono.

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Meninos Insanos…

Naquela época, corríamos feito loucos pelos trilhos da ferrovia. Longe dos olhos e das tecnologias, no limite da molecagem, pegávamos rabeira no trem. Do pontilhão próximo à antiga Villares, seguíamos até os fundos do Shopping Sorocaba, uma viagem cheia de aventuras. Não sabíamos o que significava a palavra adrenalina, apenas a tínhamos correndo pelas veias. Insanos, dia desses vi uns meninos insanos pegando rabeira no trem. Ah, a velhice nos atinge em cheio. Ou seria a covardia? Trinta e tantos anos depois, eu, no conforto do ar condicionado do carro, ouvindo um velho rock, observava os meninos dependurados, cabelos ao vento, sem o menor pudor, sem o menor cuidado. Menores vivendo suas vidas intensas de adrenalina, ainda que eles sequer saibam lá o que isso signifique. Insanos, pensei. Como éramos insanos, como são insanos. Me lembro de que lá do alto dos trilhos, agarrado ao vagão, vagávamos olhado os carros que nos olhavam. Em algum momento, ainda que a minha memória falhe, vislumbro o olhar de um homem que prestava atenção em mim, um olhar do conforto do seu carro, ouvindo um rock bem recente, talvez sem ar condicionado. Aquele homem que me mirava nos tempos da meninice agora me mira do alto da sua rabugice. Insanos! Ainda que os tempos fossem outros, sem centenas de canais de TV, sem gigabytes de informações, sem redes sociais, éramos inconsequentemente insanos. Como diz meu irmão mais velho, somos sobreviventes. Apesar de tudo, sobrevivemos. Difícil não olhar para trás com um certo saudosismo, éramos insanos, éramos felizes. Depois do passeio clandestino, uma tubaína dividida em seis copos e lanches de mortadela num bar qualquer, ao lado de bêbados inveterados e um dono de boteco mal-humorado. Sobreviventes, não sei quem são aqueles meninos insanos que vi dependurados no trem. Serão felizes? Sobreviverão? Quem sabe, um deles, lá na frente, seja um terráqueo a escrever suas crônicas. Quem sabe um deles seja publicitário, sambista, bancário, caminhoneiro ou, quiçá, seja assassinado com tiros na frente de um bar. Difícil olhar para o passado apenas com olhos marejados pelos bons tempos. Bons, com certeza, porém insanos. Arrisco dizer que o homem que me olhava de dentro do seu carro naquelas tardes juvenis e o menino que hoje se dependura insanamente no trem que corta a minha visão são a mesma pessoa. O tempo perde o sentido nas memórias, são os sentimentos impressos com tinta de adrenalina nas veias que dão o tom dessas memórias insanas. Insanos…

Ponto final…

Esse ônibus passa na policlínica, perguntou-me a senhora de cabelos brancos e bengala. Antes que eu pudesse dizer que não sabia, uma outra senhora de cabelos brancos respondeu, passa. Aos poucos, vários senhores e senhoras idosos lotaram os bancos. Aqueles mais dispostos, seguiram em pé, assim como eu. Minha mochila foi para o meio das pernas, para não ocupar o espaço que a cada minuto de espera, tornava-se mais escasso. Por fim, ônibus lotado, deixamos o terminal. Eu arriscaria dizer que oitenta porcento das pessoas naquele coletivo estavam acima dos sessenta anos. Ao longo do caminho, mais uns sete ou oito idosos embarcaram. A pergunta inicial, se ele passava na policlínica, fez sentido. Sem fones de ouvido, eu pude ouvir os relatos, as reclamações, os diagnósticos e até mesmo qual medicação é melhor indicada para esta ou aquela dor. Entre assuntos medicamentosos, uma ou outra louvação. Deus e remédio talvez tenham sido as palavras mais ouvidas por mim. Talvez porque sejam sinônimas. Talvez por que uma delas seja o placebo. Devagar, entre trancos e freadas, o coletivo seguiu por ruas que me eram conhecidas. Pude notar fachadas novas, casas que deram lugar a pequenos edifícios, novos comércios e alguns terrenos baldios, desses bons para mandar alguém carpir. Enquanto a audição deleitava-se com o universo vocabular das senhorinhas, umas doces como as vovós dos contos de fadas, outras rabugentas como só uma vida sofrida sabe modelar, os olhos capturavam imagens de uma cidade que sempre foi minha, na qual sempre fui um andarilho. Imerso nesse misto de sons e imagens, o coletivo chegou a tal policlínica, que outrora fora o hospital para o qual eu fui levado quando fui atropelado. Memórias, os aromas da infância, da adolescência, dos primeiros anos da juventude, todos misturados às colônias de alfazema, desodorante Avanço e suor. O ônibus quase que esvaziou, ficamos eu, o motorista e mais uns dois ou três rapazes com pastas nas mãos. O ponto final da linha é na prefeitura, logo, da policlínica até o palácio dos tropeiros, iriamos apenas nós, uma meia dúzia de gente que seguiu silenciosa, cada qual no seu banco. Os olhos ainda escrutinavam a cidade, mas os ouvidos tinham agora apenas os rangidos metálicos do coletivo. Na boca, um gosto amargo se fez intensificar.

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Maria

Maria é minha aluna. Sua mãe fez das tripas coração e segurou as pontas quando o pai desapareceu no mundo. Maria trabalha das 8h às 18h, pega no pesado na linha de produção. Acorda às 5h para ajeitar a casa. 7h está no ponto de ônibus. 18h45 ela chega à faculdade. Maria é minha aluna e se meteu a estudar. Sem diploma, o salário é baixo. A vida é dura. Maria chega para minhas aulas com fome, com sono, sentindo-se suja, feia. O papel de enxugar as mãos do banheiro da faculdade lhe serve de banho. A fome mata-se com um pacote de Fofura, barato, o dinheiro de um salgado faz falta no fim do mês. Maria perdeu minha prova. Choveu e o ônibus atrasou. Na anterior teve 4,5. Não estudou, passou a madrugada com a mãe no hospital. Sábado a classe vai visitar uma empresa, aprender como funciona a produção. A produção onde Maria trabalha. Mas sábado é dia de Maria cozinhar para gente fina. O bico de cozinheira no restaurante paga o xerox, o Fofura. O salário da fábrica vai todo na faculdade. Maria não levantou a mão quando perguntaram quem iria participar da formatura. Baile, vestido, fotos, Maria não pode. Na última aula Maria me disse que está com medo de pegar DP. Me perguntou se tinha algum trabalho para ajudar na nota. Eu disse, damos um jeito, Maria. Enquanto isso, noutro canto da cidade, Cauã escreve no seu facebook, debocha de aluno de “uniesquina”. Ele não conhece Maria. Mal sabe ele que o filet mignon ao molho madeira que ele come todo sábado é ela quem faz. Mais um semestre começa. Marias, Josés, Cauãs…

#crônicasdeumterráqueo

Mundo cão…

O cinema errou feio, nada de macacos, os cães hão de dominar o mundo. Será um mundo cão. O dito popular, tive um dia de cão, há de ser ressignificado. Waldick Soriano desejaria ter retirado a palavra não de uma de suas canções de maior sucesso. Eu sou cachorro, sim. Nem mesmo o Rock da Cachorra, na voz de Eduardo Dussek, nada pode contra a cachorrada. Dia desses, passeando com a Aline por um outlet chiquetoso, tive a epifania do óbvio ululante. Estamos à beira de um planeta dos cachorros. Enquanto a Aline serpenteava pelas araras cheias de roupas de uma loja, eu buscava algo para molhar o bico. O providencial quiosque de cervejas especiais, além de me proporcionar a degustação de uma refrescante Session IPA, foi palco de uma inusitada constatação. Dois atendentes muito simpáticos trabalhavam no quiosque. De olho nos clientes e na tela do computador que exibia um jogo de futebol qualquer, um deles fez um comentário que não me passou despercebido. Hoje, misteriosamente, os carrinhos tem mais gente que cachorros. Fiquei confuso com a afirmação do rapaz que se desdobrava em encher copos de Guinness e maldizer o centro-avante do time adversário. Ao meu lado, um senhor de talvez cinquenta ou sessenta anos, me pergunta sobre o placar. Fiz-lhe a minha melhor cara de não faço a menor ideia e apenas dei de ombros. Minha mente que nunca foi atenta aos eventos futebolísticos apenas rodopiava na busca da compreensão daquela frase, dita sem maiores pretensões pelo jovem atendente. Mas que raios quis ele dizer com há mais gente que cachorros nos carrinhos? Indignado com a minha ignorância, pedi outro chope na esperança de perguntar-lhe, assim como quem não quer nada, sobre essa coisa de gentes e cachorros. Nada feito, o chope foi tirado e servido apenas com a visão periférica, o jogo lhe interessava mais que o meu semblante contorcido pelo sinal de interrogação. Dei um longo gole no chope para lavar minha angústia. Enquanto girava meu corpo sobre a banqueta para poder observar por onde andava Aline, ao lançar o olhar para a grande praça que conecta todas as lojas, como uma bigorna do Papa-Léguas em queda livre sobre a cabeça do Coyote, o comentário do atendente se fez luz. Diversos casais circulavam com carrinhos de bebês. Passeando por entre os corredores, dentro das lojas, os carrinhos abundavam. Apurando o olhar, a constatação! Parte dos carrinhos trazia em seu interior cães. Carrinhos de bebês recheados de cachorros. Tal qual um indígena pré-colombiano, de súbito, o elemento canino se fez presente – reza a lenda que os índios, alguns deles ao menos, na época do descobrimento, não se deram conta das caravelas no horizonte, pois aquelas monstruosas naus nada representavam no seu espectro cognitivo. Tão assustado quanto o menino daquele filme de suspense, eu disse para mim mesmo, vejo cães por todos os lados. Terminado meu chope, pus-me a circular e a observar o conteúdos dos carrinhos. Numa proporção de um cachorro para cada dois ser-humaninhos, aquele, segundo o atendente, era um dia atípico. Normalmente os cães são maioria e, se levarmos em conta os caninos que andavam em coleiras ou nos colos de seus donos, certamente a população canina ultrapassava a dos pequenos rebentos. Entrei numa loja em busca da Aline, que carrega no ventre nossa pequena Heloísa. Eu precisava compartilhar com ela minha descoberta. Flanando por entre bermudas e camisas em busca dos meus amores, ouvi os latidos estridentes de uma dessas criaturas. No colo de uma jovem senhora, o cão latia desesperadamente para um garoto que brincava com um boneco do Homem de Ferro. Incomodada, a jovem senhora pediu que o garoto parasse de se agitar, pois o totó estava desconfortável com os movimentos bruscos que Tony Stark fazia por entre sungas e biquinis. Ao lado dela, em consonância com seus pensamentos, outra jovem senhora, também acompanhada de seu totó, no carrinho de bebês, olhando torto para o garoto, questionou-se onde estariam os pais daquele demônio de calças curtas. Diante do ocorrido, em dúvida se eu não me encontrava numa das pegadinhas do Silvio Santos, pensei comigo: preciso de outro chope.

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Quem vai casar?

Sentou-se em frente a mesa do professor sem muita convicção. Professor, preciso te pedir algo. Pois pida, disse-lhe em um quase sorriso. Era seu costume falar certas palavras em português errado. Não por ignorância, mas por estratégia. É que ao proferir pobrema diante de um problema, a aura catedrática, muitas vezes inibidora de um diálogo mais fluído, evaporava-se em nuvens de descontração. Dizia ostra no lugar de outra, bão no lugar de bom. A faca era de dois legumes e o combinado, cãobinado. Tomate-ca-mente era automaticamente e, de trocadilho em trocadilho, de erro em erro, a comunicação se dava sem prejuízo. Fazia por graça, ainda que um ouvido ou outro, inadvertido, achasse um despautério professor falar assim. Então, professor, seu trabalho, aquele em grupo, que o senhor sorteou semana passada… As reticências, o olhar cabisbaixo e os vinte anos de sala de aula profetizavam o pedido de dispensa, restava saber o motivo, razão ou circunstância. Tô ligado, disse o professor para abreviar o suplício. Da lista de possibilidades, é sabido que a morte não se anuncia com semanas de antecedência, logo descartou o velório de alguma tia lá no interior do Paraná. Tamborilando os dedos sobre a mesa ao ritmo da marcha imperial, disparou. Quem vai casar? As sobrancelhas arqueadas e a luminosidade no rosto vieram seguidas de um sonoro eu. Eu, professor. Na sexta no civil, no mesmo cartório no qual sua futura esposa trabalha de recepcionista, logo pela manhã Sábado no religioso, para agradar a família dela, lá no interior do Paraná, na igreja matriz, bem a tardinha. Os trâmites para o casório já vinham de um ano antes. O aperto financeiro e a dificuldade de reunir toda a parentada fez com que a data coincidisse com a apresentação do trabalho da faculdade. É coisa do zodíaco, diziam-lhe os amigos solteiros. Antes evitar uma DP que afivelar-se nas coleiras do matrimônio. Sabiam que perderiam o goleiro das noites de terça para a futura esposa e o Master Chef. Já os familiares, agarrados à última esperança de finalmente ver-lhe casado, mandariam às favas o professor, tudo dentro das normas da ABNT, que fique claro. Segundo minha avó, disse-lhe, o homem nasce, cresce, fica bobo e casa. Pois é, professor… As reticências, novamente elas. O aluno esperava uma resposta. Era uma faca de dois legumes, o professor poderia dizer-lhe ema ema, cada um com seus pobrema. O professor sabia disso. A pausa dramática se estendeu por mais alguns segundos, o suficiente para uma gota de suor formar-se no canto esquerdo daquela têmpora universitária. Sem pobremas, meu caro. Trocamos com o grupo anterior e, tomatecamente, seu grupo fica para a ostra semana. Cãobinado? Oxi, professor. O alívio muscular podia ver-se em fluidas ondas sob a pele do rapaz. Desejou-lhe um bão casamento enquanto observava-o flanar dois centímetros acima do solo. De volta aos teclados do seu computador, à crônica que digitava quando fora interrompido pelo noivo atormentado, percebeu uma sombra diante de si. Antes que pudesse concluir a digitação desta linha, a sua frente, sem muita convicção, sentou-se outro aluno. Pida!

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