Neno era o nome do moleque chato que vivia na casa ao lado. Nome não, apelido. De fato, eu nunca soube o seu nome. Neno. Pirralho de cabelos desalinhados, roupas mal cuidadas e dentes manchados de cárie. Neno vivia correndo pelas calçadas com alguma bugiganga que coletava nos ferros-velhos do bairro. Nessa época éramos todos, de algum modo, moleques chatos. Estávamos nas férias escolares e nos juntávamos na praça para brincar e brigar. É que a brincadeira, nessa fase, sempre vira briga, ainda mais quando o Neno estava por perto. Havia quem quisesse socar a cara dele apenas e tão somente pelos eu olhar insolente. Certa vez, a mãe do Neno nos chamou para jantar na casa deles. De fato, eu nunca soube se aquela mulher de traços duros era realmente a mãe do Neno. Eles moravam nos fundos da quitanda do Paulo. Paulo trazia muambas do Paraguai e as vendia em meio às frutas e hortaliças. Paulo era o nipônico mais brasileiro que eu já conheci, mas isso fica para uma outra crônica. A casa do Neno era uma casa pobre. Móveis rebentados, paredes descascadas. Sentada no canto do sofá, Emília. Irmã do Neno. De fato, se ela era ou não irmã do Neno, eu nunca soube. Emília, apesar de muito jovem, parecia já ter vivido muitas vidas. Tinha sardas que se espalhavam sobre o nariz e as maçãs do rosto. Tinha os dente igualmente manchados de cáries, como os do Neno. Tinha, também, marcas roxas nos braços. Ali, sentada no canto do sofá, vestida com uma camiseta de campanha política vários números acima do seu e com uma almofada sobre as coxas, Emília corou ao me ver entrar na modesta casa. Sua mãe lhe disse, Emília, levanta e cumprimenta o amigo do Neno. Neno riu, nem de longe éramos amigos. Emília delicadamente meneou a cabeça enquanto sussurrava para a mãe, não posso, estou só de calcinha. Eu apenas acenei a ela com a mão, ela apenas me sorriu um meio sorriso. A mãe entregou à Emília um prato cheio de comida. Vocês dois pegam a comida no fogão, disse-nos enquanto sumia no corredor que levava a um outro comodo. Neno foi primeiro, encheu o prato, sentou em frente ao antigo televisor, numa banqueta de madeira, e desligou-se do mundo. Coloquei duas colheres de arroz e uma outra de algo que até hoje não sei dizer o que era. De fato, era carne, mas só deus saberia de quê. Sentei-me no sofá, na ponta oposta à Emília. Na TV, um desenho animado qualquer. Neno devorava sua janta sem tirar os olhos do aparelho. Eu, de cabeça baixa, remexia a comida no prato sem de fato comer. Emília comia com calma, deixando na borda do prato alguns pequenos pedaços de cebola. A mãe voltou do comodo, havia mudado de roupas. Trabalhava no terceiro turno de alguma fábrica fábrica. Saiu dizendo que havia sagu na geladeira. Neno não tirava os olhos do desenho animado. Emília deixou seu prato sobre o braço do sofá e, num salto quase ornamental, passou do sofá ao corredor que dava para o outro comodo. De dentro do comodo, Emília gritou, Neno, dá sagu pro seu amigo. Neno olhou para mim, olhou para a geladeira, tornou a olhar para mim e retornou ao seu hipnótico desenho animado. Levantei-me e fui ver a cara do sagu. Parecia bom. Voltava para a sala, perguntar ao Neno onde tinha um pote para por o sagu, mas parei diante do corredor. Emília, havia trocado de roupas e penteava os cabelos diante de um diminuto espelho. Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando-a. Ela é puta, disse Neno. Hã? O olhar de Emília encontrou o meu. O que você disse, pirralho? PUTA, gritou Neno. PUTA. Outro salto, quase ornamental, trouxe Emília para a sala. Neno olhou para ele, insolente. PU-TA. Ela pegou Neno pelos cabelos e socou-lhe a cara. O prato voou ao chão. PUTA, entre lágrimas, SUA PUTA. O segundo soco fez Neno sangrar. PUTA! Neno saiu correndo pelo corredor da quitanda e sumiu. Emília juntou os cacos do prato quebrado, ajeitou a banqueta e as almofadas do sofá. Dois filetes de lágrimas haviam borrado sua maquiagem. Ela abriu a geladeira, pegou uma colherada de sagu e me deu. Não tem pote, disse-me antes de sair pelo corredor da quitanda. Lá fora, na rua, um carro grande a esperava. Eu tinha 12 anos. Neno, 11. Emília, não mais que 16. Nunca mais os vi.
#crônicasdeumterráqueo