Epopéia Berinjélica

Seu nome era Cássio, ou Tássio. Tarso talvez, eu não me recordo bem. Já tive tantos alunos, tantos nomes diferentes. Acho que era Cauê, ou Cauã. Difícil saber, não tenho registros documentais desse momento. Pois bem, ele teria os seus doze ou treze anos quando sua mãe me ligou em resposta a um anúncio nos classificados do jornal. Aulas de informática? Sim. Particulares? Sim. E o que se aprende nessas aulas? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Basic e Pascal, senhora. Do outro lado da linha, um silêncio. Aquele amontoado de palavras parecia conversa de iniciados em alguma sociedade secreta. Quantas vezes por semana? Duas. Qual o valor? A mensalidade é de 50 URVs – eram os anos de transição, mais um pacote econômico, os cruzados novos ficavam antigos e davam lugar às Unidades Reais de Valor, predecessora do Real. O que ele vai aprender mesmo? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Quick Basic e Turbo Pascal – acrescentei duas palavras novas para ser mais enigmático ainda. Três dias depois, em horário combinado, o menino apareceu. Para ser mais preciso, o menino cujo o nome me foge, chegou com o motorista particular. Desceu, entrou no pequeno cômodo que abrigava dois IBM-PC, um PC-AT 386, um MSX 2.0 todo hackeado e um Commodore Amiga 500 ligado a um monitor VGA saído de um filme de terror. Estendi a mão para cumprimentá-lo, ele estendeu-me o cheque, a primeira mensalidade, 50 URVs convertidas ao valor do dia. As aulas seguiram-se por alguns meses e, para a minha alegria, os cheques também. Eram tempos curiosos, eu tinha dezoito anos, cinco anos a mais que o pequeno sem nome, mas o tempo voava. Vencemos o DOS, o Wordstar, o Lotus 123 e caímos no admirável mundo novo das linhas de código, as variáveis, laços de repetição. O primeiro programa foi um jogo de forca. O enforcado era um conjunto de caracteres. Se o jogador errasse a palavra, a cabeça, que era uma letra o maiúscula, se transformava num asterisco. O garoto levava jeito para a coisa. Certa vez ele me disse, você pode ir lá em casa? Seu pai havia comprado um computador novo, perguntou se eu poderia ir lá, instalar. Embora o menino pudesse fazer isso sozinho, acredito que o pai não acreditava que o seu moleque de treze anos pudesse realmente fazê-lo, tantas URVs investidas em tantos meses e a pouca idade ainda pesava contra. Talvez fosse receio de que um cabo ligado errado resultasse em prejuízo, computadores nessa época eram muito caros se comparados com os de hoje em dia. Viviam em um luxuoso apartamento no centro da cidade. O pai era médico. A mãe eu não sei o que fazia, arquiteta talvez, mas eu nunca soube. O motorista foi me buscar em casa, me senti um lorde. O senhor usava quepe. As únicas pessoas que usavam quepes que eu conhecia eram policiais, como o meu pai. Fui recebido como um mago, o guru dos computadores. O pai foi extremamente gentil, mesmo quando soube que eu tinha dezoito anos e que estava terminando o ensino médio. Nerds, ouvi a mãe dizer em voz baixa para o marido. Desempacotamos o computador. Monitor, CPU, cabos, teclado, mouse. Deixei tudo sobre a mesa e, sob o olhar atento do pai e da mãe, disse ao garoto, quer montar você? Os olhos dele brilharam! Sempre me dirigindo um olhar de confirmação antes de conectar cada coisa, o menino ligou todos os componentes e em poucos segundos o cursor da linha de comando do MS-DOS piscava na tela do monitor VGA, infinitamente melhor que o meu. Juntos, instalamos todos os programas que ele aprendeu a usar no curso. A mãe sorria feliz de ver que as URVs tinham sido bem empregadas. O pai, tenho certeza, pensava o óbvio, quem montou o computador foi o filho, mas eu ainda assim cobraria pelo apoio espiritual. Antes de me despedir e receber o último cheque, agora acrescido da visita técnica, a mãe, educadíssima, me perguntou, fica para jantar? Eram quase 18h e eu ainda seguiria para a escola, terminar meu ensino médio. Jantar? Claro! Amigo leitor, amiga leitora, nem tudo nessa vida são flores. Sentamo-nos todos à mesa. O pai me serviu um copo de suco de maracujá. Natural! Nada de suquinhos em pó. A mãe apareceu com uma grande bandeja, berinjelas à parmigiana. BERINJELAS. BE-RIN-JE-LAS. Ciente de que teria de manter a pose e não fazer feio na frente de gente tão gentil, mirei na menorzinha, afinal, dos males, o menor. Falhei, a maior berinjela me foi imposta, eu era visita. Eu não gosto de berinjela. Gosto de queijo, gosto de molho de tomate, mas aquela mastodôntica berinjela era um nó górdio. Contrariando a minha visão de mundo, todos naquela casa não apenas gostavam de berinjelas, eles adoravam. A primeira garfada foi cruel. Meio copo de suco para fazer descer a leguminosa maldita. Puxei o queijo de lado, deixá-lo-ia para o final, para tirar da boca o gosto berinjélico. A segunda garfada fez secar o que restava do suco. Mais um copo, Edgar. S’il vous plaît, Mademoiselle. E assim, de meio copo em meio copo de suco, a berinjela foi toda para o bucho. O queijo do final não ajudou, estava impregnado de berinjela. Um gole final de suco, dei a desculpa que eu teria prova e não poderia me atrasar. Despedi-me imensa e felizmente agradecido pelo delicioso jantar. O motorista foi cortesia apenas para a ida. No meio do caminho comprei uma água tônica e fui fazendo gargarejos até chegar na OSE. Vendo meu semblante de poucos amigos, Moura, o bedel, perguntou, e essa cara de quem comeu e não gostou? Sentei-me no degrau da escada ao lado da sua mesinha e contei a minha epopeia berinjélica. Até hoje posso ouvir as risadas do Moura…

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Neno…

Neno era o nome do moleque chato que vivia na casa ao lado. Nome não, apelido. De fato, eu nunca soube o seu nome. Neno. Pirralho de cabelos desalinhados, roupas mal cuidadas e dentes manchados de cárie. Neno vivia correndo pelas calçadas com alguma bugiganga que coletava nos ferros-velhos do bairro. Nessa época éramos todos, de algum modo, moleques chatos. Estávamos nas férias escolares e nos juntávamos na praça para brincar e brigar. É que a brincadeira, nessa fase, sempre vira briga, ainda mais quando o Neno estava por perto. Havia quem quisesse socar a cara dele apenas e tão somente pelos eu olhar insolente. Certa vez, a mãe do Neno nos chamou para jantar na casa deles. De fato, eu nunca soube se aquela mulher de traços duros era realmente a mãe do Neno. Eles moravam nos fundos da quitanda do Paulo. Paulo trazia muambas do Paraguai e as vendia em meio às frutas e hortaliças. Paulo era o nipônico mais brasileiro que eu já conheci, mas isso fica para uma outra crônica. A casa do Neno era uma casa pobre. Móveis rebentados, paredes descascadas. Sentada no canto do sofá, Emília. Irmã do Neno. De fato, se ela era ou não irmã do Neno, eu nunca soube. Emília, apesar de muito jovem, parecia já ter vivido muitas vidas. Tinha sardas que se espalhavam sobre o nariz e as maçãs do rosto. Tinha os dente igualmente manchados de cáries, como os do Neno. Tinha, também, marcas roxas nos braços. Ali, sentada no canto do sofá, vestida com uma camiseta de campanha política vários números acima do seu e com uma almofada sobre as coxas, Emília corou ao me ver entrar na modesta casa. Sua mãe lhe disse, Emília, levanta e cumprimenta o amigo do Neno. Neno riu, nem de longe éramos amigos. Emília delicadamente meneou a cabeça enquanto sussurrava para a mãe, não posso, estou só de calcinha. Eu apenas acenei a ela com a mão, ela apenas me sorriu um meio sorriso. A mãe entregou à Emília um prato cheio de comida. Vocês dois pegam a comida no fogão, disse-nos enquanto sumia no corredor que levava a um outro comodo. Neno foi primeiro, encheu o prato, sentou em frente ao antigo televisor, numa banqueta de madeira, e desligou-se do mundo. Coloquei duas colheres de arroz e uma outra de algo que até hoje não sei dizer o que era. De fato, era carne, mas só deus saberia de quê. Sentei-me no sofá, na ponta oposta à Emília. Na TV, um desenho animado qualquer. Neno devorava sua janta sem tirar os olhos do aparelho. Eu, de cabeça baixa, remexia a comida no prato sem de fato comer. Emília comia com calma, deixando na borda do prato alguns pequenos pedaços de cebola. A mãe voltou do comodo, havia mudado de roupas. Trabalhava no terceiro turno de alguma fábrica fábrica. Saiu dizendo que havia sagu na geladeira. Neno não tirava os olhos do desenho animado. Emília deixou seu prato sobre o braço do sofá e, num salto quase ornamental, passou do sofá ao corredor que dava para o outro comodo. De dentro do comodo, Emília gritou, Neno, dá sagu pro seu amigo. Neno olhou para mim, olhou para a geladeira, tornou a olhar para mim e retornou ao seu hipnótico desenho animado. Levantei-me e fui ver a cara do sagu. Parecia bom. Voltava para a sala, perguntar ao Neno onde tinha um pote para por o sagu, mas parei diante do corredor. Emília, havia trocado de roupas e penteava os cabelos diante de um diminuto espelho. Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando-a. Ela é puta, disse Neno. Hã? O olhar de Emília encontrou o meu. O que você disse, pirralho? PUTA, gritou Neno. PUTA. Outro salto, quase ornamental, trouxe Emília para a sala. Neno olhou para ele, insolente. PU-TA. Ela pegou Neno pelos cabelos e socou-lhe a cara. O prato voou ao chão. PUTA, entre lágrimas, SUA PUTA. O segundo soco fez Neno sangrar. PUTA! Neno saiu correndo pelo corredor da quitanda e sumiu. Emília juntou os cacos do prato quebrado, ajeitou a banqueta e as almofadas do sofá. Dois filetes de lágrimas haviam borrado sua maquiagem. Ela abriu a geladeira, pegou uma colherada de sagu e me deu. Não tem pote, disse-me antes de sair pelo corredor da quitanda. Lá fora, na rua, um carro grande a esperava. Eu tinha 12 anos. Neno, 11. Emília, não mais que 16. Nunca mais os vi.

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Boulevard

Sentou-se a beira de um boulevard qualquer. Sobre a mesa, uma xícara de café fumegante, um maço de cigarros fechado e o velho carderno de anotações. Me dá um, senhor? O jovem de jeans sujos surgiu como assombração. Não. Não? Não. O jovem se distanciou calado, mas seu olhar denunciava um séquito de injurias ditas mentalmente. Recolheu o maço de cigarros e levou-o ao bolso da jaqueta. Deixara de fumar havia anos. Sempre carregava consigo um maço a titulo de lembrete. Sou mais forte que você. Sorveu um gole do café e pos-se a contemplar os transeuntes. O boulevard fervilhava de turistas. Iam e vinham com suas máquinas fotográficas e com seus idiomas incompreensíveis. Na mesa ao lado, um casal de suecos. Ou seriam noruegueses? De fato, não fazia a menor ideia. Ela apontou para a garrafa de água que um dos garçons levava para um outro clinete qualquer. Ele gesticulou com os dedos a mímica local pra um cafézinho. De certo, aprendeu observando os locais. Observar, eis, talvez, a única característica que nos distingue dos demais animais. Somos homos observatorius. Bom, nem todos. Na verdade, a maioria passa pelos mundo sem dar uma boa observada. Riu de si mesmo e sorveu mais um gole do seu café. Às vezes se pegava nessas elocubrações sobre a natureza humana. Quando pequeno, na escola, ao ser perguntado pela professora o que gostaria de ser quando crescesse, respondeu antropólogo. A professora riu, afinal, de onde raios uma criançca de seis anos responderia antropólogo? Ouvira a palavra num noticiário e, feito papagaio, a reproduziu quando julgou oportuno. A antropologia ficou lá apenas no vocabulário. Quando cresceu, tornou-se contador. Nem saberia explicar o motivo, mas um dia se descobriu trabalhando num escritório qualquer. Logo estava numa faculdade qualquer. Tempos depois, era gerente de um negócio qualquer. Os números se interpuseram em sua vida, a única coisa mal contada nessa história. Vivia? Eu diria que não, mas como narrador, devo me ater a minha neutralidade. Bom, voltemos ao boulevard. Os suecos (ou dinamarqueses), agora discutiam. Ela gesticulava frenéticamente com a garrafa de água entre as mãos. Ele apenas dava de ombros. Vencido, ele se levantou e entrou no café. De seu canto, nosso protagonista observava a mulher. Teriam, como dizem hoje em dia, tido uma D.R.? Aparentava ser um casal recente, desses que ainda enamorados, se lançam em viagens românticas por outros continentes. Teria ela descoberto que ele expreme o tubo de pastas de dentes no extato meio, deixando aquele bolo de pasta no final do tubo, deformando a simetria engenhosa que os especialistas em embalagens projetaram para obter o maior rendimento ao pressionar a pasta de uma extremidade a outra? Ou, ainda, teria ela por fim descoberto que ele tem por hábito cheirar as pontas dos dedos depois que estes percorrem localidades pouco ortodoxas do corpo? Antes que uma nova hipõtese pudesse ser formulada, o suéco/finlandês retornou com uma nova garrafa de água. Sem gás. De todas as trivialidade que podem levar um casal a discutir, neles foi a inércia masculina para trocar a indesejada água com gás por outra, sem gás. O último gole de café já havia esfriado. O jovem de jeans sujos reapareceu. Entre os lábios, dependurado, um cigarro amarrotado. Tragou-o com vigor. Baforou a fumaça para a esquerda, sem perceber, diretamente nas fuças do suéco/sabe-se-lá-o-quê. Bateu as cinzas na xícara do nosso protagomista e, antes que pudesse seguir seu caminho feliz e vingado, deu de cara com o suposto nórdico. Obviamente, não se entenderam. O jovem gesticulava e apontava para a mesa, para o nosso protagonista. O suéco (fiquemos com o suéco, para simplificar) gesticulava e apontava para o cigarro. Ela acenava para o garçom, na esperança de que ele pudesse desfazer o imbrólio. Nosso protagonista deixou sobre a mesa algumas notas. Recolheu seu velho caderno de anotações e seguiu para o escritório. Vivia? Eu diria que em pequenas doses, a beira de boulevares.
 
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