Avaliação…

Dorival sabia o que o aguardava quando saiu da sala 1C. Desde a graduação, sabia que estava se metendo em terreno pedregoso. Filosofia? O espanto dos demais nada tinha que ver com a admiração frente ao conhecimento. Filosofia? Mas logo Filosofia, filho? O espanto de Dona Marília era medo memso. Medo de que seu filho fosse mais um desses corpos fustigados que se arrastam pelos corredores das escolas públicas. No tempo de Dona Marília não. Lá no seu tempo havia respeito. Sobrevivente dos anos dourados, quando o exercício do magistério e o exercício da medicina gozavam das mesmas glórias, ela optou por ser médica. Mas o tempo flui. A jovem Marília tornou-se a Dona Marília, mãe de Dorival e a escola degradou-se a ponto de o seu espanto ecoar durante dias pelos cômodos do antigo casarão da antiga vila operária. FILOSOFIA, Dorival? Ainda se fosse pelo diletantismo, pela aura aristocrática de flanar sobre os saberes filosóficos sem maiores pretensões talvez, já para dar aulas… Jesus Cristo, Dotival! Aulas? Se o pai fosse vivo, morreria duas vezes de desgosto. À margem dos comentários nas festas de fim de ano, Dorival graduou-se. Logo no ano seguinte, passou no concurso público e, para o desespero de Dona Marília, em março Dorival percorria os corredores da escola pública, um alvo exposto. Sua primeira aula foi um desastre. Dorival, inocente como todo professor recém formado em Filosofia, crente na epígrafe aristotélica de que “todo homem, por natureza, deseja conhecer”, naqueles primeiros quinze minutos de aula, percebeu que Aristóteles deveria, antes, ter lido Hobbes. Animais! São uns animais, dizia a professora de Matemática. Bestas! São umas bestas, dizia o professor de Química. O de História arrematava, são um bando de lazarentos. La-za-ren-tos! A sala dos professores exalava o ódio. Dorival não sabia como lidar com a ambiguidade que experimentava no translado da sala de aula para a sala dos professores. Seriam os alunos, por natureza, umas bestas? Ou, por sistemática classificação dos seus professores, teriam os alunos se convertido em bestas? Dorival passou a frequentar o recreio. Passou a circular entre os meninos e meninas que o repudiavam como um leproso. A escola havia erguido barreiras altas o suficiente para que professores e alunos fossem não mais que inimigos, cada qual no seu quadrado. Filosofia, Dorival? Ainda se fosse Matemática! Filosofia? Quem quer saber de Filosofia, hoje são todos umas bestas, uns animais. Até Dona Marília, que nunca fora professora, sabia que lá dentro da escola, o mundo estava perdido. Ela, que sequer dava bom dia ao zelador do hospital. Ela, que sequer dava bom dia às pacientes. Ela, que todos os domingos rezava pelo bem dos seus. Até ela, que nunca havia posto um pé sequer nos corredores da escolas públicas, sabia que o problema não tinha solução. Dorival sabia das dores de sua mãe ao vê-lo professor. Dorival, ao contrário dela, não sabia nada da escola, nada dos alunos, nada sobre bestas e animais. Um dia Dorival, sem esperanças, escreveu na lousa: avaliação. Os alunos, inquietos, começaram a perguntar-se, cadê a prova? Dorival, sentado sobre a mesa, balançava as pernas no ar e rodopiava o toco de giz com os dedos. Renatinha foi a primeira a fazer galhofa. Cadê as perguntas? Quanto vale a prova? Ele nem deu matéria. Depois de quinze minutos de alvoroço, Dorival voltou a escrever na lousa, logo abaixo da palavra avaliação, grafou: reprovado. REPROVADO? Tá maluco, seu bosta? Nem deu prova. Nem deu matéria. Nem nada… Dorival levantou-se e saiu da sala. Dias depois, quando a professora eventual apareceu, os alunos souberam que era Dorival quem havia sido reprovado. Não aguentou o tranco, disse Renatinha com um sorriso satânico. Bunda-mole, disse o professor de História. Dona Marília até hoje chora o sumiço do filho Dorival. Seu Manel, o senhorzinho que vendia salgados na saída da escola, depois de uma visita aos parentes, lá pelas bandas de Mucupira, jura de pés juntos que viu Dorival trabalhando no guichê da rodoviária: no crahá dizia Sócrates, mas tenho certeza que era o Dorival.

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Mirela…

[Conteúdo impróprio para menores de idade e maiores de pudor]

Mirela tinha quinze anos e era minha prima. Prima de consideração, posto que era filha da irmã de Dona Eufrida, a mulher de meu tio. Numa dessas tardes de verão, Mirela entrou no meu quarto. Aproximou-se de mim e sem cerimônias perguntou-me o que eu fazia com a minha maquininha de fazer xixi. Disse-lhe o que qualquer menino de treze anos como eu diria, o óbvio, xixi. Ela colocou sua mão para dentro do meu short e segurou com seus dedos delicados o, como ela mesma batizou, meninão. Com movimentos delicados, Mirela ensinou-me a punheta. Em seguida, jogando-me na cama, com seus lábios, língua e saliva, mostrou-me o que era um boquete. Vendo nos meus espasmos musculares a eminência da minha primeira ejaculação, Mirela sentou-se sobre mim e ensinou-me a cópula. Senti seu interior quente e molhado e, por fim, aprendi o que era gozar. Vinte e cinco anos depois, lá estava ela descendo as escadas do casarão de Dona Eufrida, que deus a tenha. Meu tio também passara dessa para a melhor e Mirela herdara aquela propriedade. O tempo lhe fora gentil. Ao contrário de todas as demais mulheres da família, cuja a lida doméstica e os cuidados com os rebentos lhes arebentaram, Mirela mantinha-se um espetáculo. Eu casei-me com Josefa, mulher casta, fiel aos ditames da Santa Igreja. Me fora prometida por seu Antenor, compadre de meu pai. Com Josefa tive três filhos. As gêmeas Maria Eduarda e Eduarda Maria e o caçula. Josefa jamais foi mulher de fogosidades. Austera, o sexo era como dizia o cânone, crescei-vos e multiplicai-vos, mas as complicações uterinas com a vinda do caçula nos desobrigou a povoar esta terra de Noé. As memórias inundavam-me a cabeça enquanto observava Mirela descendo as escadas com Miguel. Miguel! MIGUEL! Meu caçula vinha ao seu lado com um olhar de garoto que abusou do melado. Um olhar familiar. Mirela notou a minha presença e lançou-me um daqueles seus olhares de mulher fatal. Esgueirei-me até a cozinha, em busca de algo mais forte que o ponche de frutas que centenária vó Dinda fazia questão de entuchar em todos. Vasculhava o armário de bebidas quando vi Miguel vindo ao meu encontro. Gelei. Tomei um gole da primeira garrafa que encontrei. O líquido desceu queimando minhas entranhas. Miguel disse: papai, aprendi umas coisas muito legais com a Tia Mirela, ela me disse que você gostaria de saber. Perdi o ar. Havia duas coisas em que Mirela era expert: sexo e me fazer passar vergonha. Certa vez, na casa da Senhora Concheta, Mirela me fez crer que a filha da Senhora Concheta me desejava. Me falou das confidências que a meninota a tinha feito, dos seus desejos por mim. Eu já contava com meus dezesseis anos e, convicto que a guria me desejava, lancei-me em galanteios. Jussara, que já estava noiva de um fidalgo qualquer, fato que eu desconhecia por completo, esculachou-me e levou o caso aos meus pais. Maldita Mirela! Sexo e me fazer passar vergonha, seus esportes preferidos. Comigo e Miguel, juntou os dois, iniciara o menino nas artes da felação e, ainda por cima, recomendou-lhe que me contasse. Maldita Mirela. Miguel, meu filho, falamos depois. Depois não, aos doze anos, Miguel era a minha cópia física, mas seu gênio era inversamente proporcional à minha calmaria. Não se daria por vencido, ainda mais que tinha o trunfo de ter-me visto bebendo às escondidas. Vamos papai, vamos lá fora. Jesus! Josefa nos olhava desconfiada. Fez sinal para que voltássemos à festa. Miguel sorria quase enebriado. Mirela flanava por entre os familiares. No quintal, Miguel disse-me: preste atenção, papai. Nada nesta mão, nada nesta outra mão e… tcharam! Uma moeda. Uma moeda de 50 centavos, daquelas com o Duque de Sei Lá Onde. Senti as pernas fraquejarem. O que sua Tia te ensinou? Mágica, papai. Mágica! Josefa pegou-nos em flagrante. Suspendeu Miguel pela orelha esquerda enquanto me lançava seu olhar de reitora do convento. Passamos os dois para o salão. Miguel logo foi-se divertir com os primos. Eu passei o restante da noite colado em Josefa. Quando a orquestra já se preparava para tocar uma polca daquelas que expulsam até demônios, éramos eu e Josefa o último casal a se despedir. Josefa e Mirela se cumprimentaram como a falsidade que manda o protocolo. A mim, Mirela disse-me ao pé do ouvido. Teu guri já bem sabia o que fazer com o meninão dele, certifiquei-me que sim, logo, restou-me ensinar-lhe umas mágicas. No banco detrás do DKW, Maria Eduarda e Eduarda Maria dormiam. Miguel, com seu sorriso de Monalisa, entretinha-se com a moeda mágica. Josefa, ao meu lado, contava algo sobre alguma intriga entre os parentes de Ourinhos por conta de dinheiro. Minha mente rodopiava. Antes de colocar Miguel para dormir, tomei coragem e perguntei-lhe sem rodeios: Tia Mirela pegou no seu meninão? Meninão, questionou-me. Sim, sua maquininha de fazer xixi. Miguel fez uma cara horrorizada e correu para a saia da mãe. Maldita Mirela! Entre os seus esportes preferidos, o sexo e me fazer passar vergonha.

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Sex Shop

Apesar dos pesares, esta é uma história de amor. Filomena levantou-se da cama decidida. Após o habitual café, seguiu para o centro da cidade. Subiu as escadas do Malagueta’s Sex Shop e foi direto ao balcão. Bom dia, disse a atendente cujas feições flertavam com algo entre o David Bowie e o Waldick Soriano. Em que posso ajudar? Filomena sustentou o olhar, apesar da vergonha que lhe consumia por dentro. Quero um consolo. A atendente sorriu-lhe e fazendo um gesto com o dedo indicador, sumiu por detrás de uma cortina vermelha logo atrás do balcão. Filomena, muito discretamente, deixou os olhos correr pelo ambiente. Uma fauna de artefatos eróticos cujas funções escapavam ao saber cotidiano da viúva-beata de cinquenta e oito anos. Adamastor, seu marido, morrera dez anos antes. Infarto fulminante. Desde então, Filomena guardava luto, Jamais se aventurara a encontrar outro amor, sabia desde pequena que o casamento, ao contrário do que dizem por ai, não acaba quando a morte nos separa. Na igreja de Filomena, o casamento é para toda a eternidade e quando a dama de negro a viesse visitar, poderia então se reencontrar com Adamastor, seu marido. Adamastor era um homem rústico, mas não era rude. Tratava Filomena com a justeza que um homem deve a sua companheira. Apesar da criação religiosa na igreja dos últimos dias, Adamastor não era lá muito católico. Às escondidas dos olhos da ala, bebia sua pinga de alambique, fumava seu cigarrinho de palha e nas noites da juventude, sapecava Dona Filomena em tórridos lençóis. Casaram-se ainda novos, ele com seus dezoito anos, ela com seus dezessete. Prometidos uma ao outro pela fidelidade dos pais-beatos, aprenderam a se amar e a desrespeitar certas regras das doutrinas. Numa fria manhã de inverno, Adamastor queixou-se de uma dor no peito e antes que Filomena pudesse levantar para lhe buscar um copo d’água, Adamastor faleceu. Aqui está, disse a atendente com sua voz cujo timbre lembrava algo entre uma seriema no cio e uma maritaca em tardes de verão. Despertada do mundo de lembranças, Filomena viu diante de si um arsenal de peças anatômicas que a fez corar. Dos mais simples e pequenos aos enormes e motorizados, havia de tudo. Com vibração intensa, com texturas agressivas, com luzes, som e até Wi-Fi! A atendente, percebendo que o espanto da senhora que titubeava se poderia tocar um deles, antecipou-se e colocou nas mãos de Filomena um Mastodonte 2000 Plus. Jesus! Filomena sentiu que o rosto corara mais ainda. Enquanto a atendente descrevia as características técnicas do artefato, como naquela música da Maria Alcina, Filomena sentiu um calor na bacurinha. Wi-Fi? Sim, Wi-Fi? Mas e para que serve o Wi-Fi? A senhora pode sincronizar a vibração com a batida do Spotify ou, ainda, com os a exibição de filmes picantes no site do fabricante, esclareceu a atendente com um piscadela de cumplicidade, completou: e ainda pode usar como roteador! Roteador? A cabeça de Filomena dava voltas com todas as vozes das beatas enaltecendo seu luto. No fundo, ainda que em vida Adamastor a tivesse mostrado que as doutrinas podiam ser deixadas de lado, após a sua morte, o medo característico das fés a fazia titubear. Será pecado? Será que lá do além, Adamastor a julgaria? Dez anos de luto-castidade e a saudade de um chamego do seu Adamastor a fizeram resoluta naquela manhã e no seu ombro esquerdo, o diabinho lhe dizia, leva mulher. Filomena sequer olhou para o ombro direito para ver se havia anjo a lhe dissuadir daquele disparate. Passou o cartão, pegou o embrulho e voltou para casa com um sorriso de Monalisa. O resto do dia foi um dia normal, de viúva-dona-de-casa. A noite, depois de um longo banho, tirou o telefone do gancho, apagou as luzes da sacada e colocou na vitrola um disco do Barry White. Após uma corrida de olhos no manual de instruções, Filomena deitou-se com seu Mastodonte 2000 Plus. Ambrósia acordou assustada, virou para o lado e chacoalhou o marido. José, José! Escuta! O marido pigarreou e sem saber bem o que acontecia, ouviu os gemidos que vinham da casa ao lado. Ó, ah, humm.. ÓÓÓ, ahhh, huumm… Aah, Aaahh.. Ahhdamastoooooor! Na manhã seguinte, enquanto a atendente espanava o pó das prateleiras do fundo, Filomena, que lhe surgiu nas escadas, ofegante e com um sorriso cujo brilho transitava entre o sol fulgurante das tardes de fevereiro e a chama vigorosa de uma fogueira da Santa Inquisição, perguntou: como configura o tal do Wi-Fi?

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Esses humanos…

Como toda história que trata dos cantos mais recônditos desta coisinha chamada ser humano, esta é uma história de traições. Rebeca sabia que o marido, vez ou outra, se metia a besta com as sirigaitas que rodopiavam o Tênis Clube Raqueteiros. Coisa de homem, dizia sua malfadada mãe. Seu pai arrumou uma em cada cidade. É que os caixeiros viajantes, assim como os marinheiros, vivem as quenturas que emanam dos países baixos onde bem lhes couber, mas a chama eterna da jura feita na igreja, sacramentada diante do Altíssimo, pois bem, esta pertencerá sempre a mulher amada. Você é a rainha do lar, Rebeca. As outras são penas passatempos, dizia a mãe, muito mais para convencer a si mesma que sua filha. O fantasma que atormentava Rebeca nas tardes de domingo não eram os passatempos, mas um certa Constança. A pretexto de se inteirar sobre as novidades no mundo dos potes plásticos, o marido agora frequentava religiosamente reuniões dominicais. Num desses domingos, Rebeca seguiu o marido. Sentou-se no último banco, ajeitou os óculos escuros e lançou seu olhar de Mata Hari para a dupla que, à nove bancos de distância, sequer prestava atenção à retórica do vendedor de potes e vasilhas. Constança e seu marido, mais que exercitando a cobiça, estavam enamorados. As mãos dadas e o sorvete dividido entre os dois na praça fez o sangue de Rebeca ferver. Na segunda pela manhã, calma e com toda a classe que toda rainha ostenta, Rebeca comunicou ao seu marido que já sabia de tudo. Ele agora era problema dela, da vagabunda, da teúda e manteúda. Constança, a constante, que se virasse com aquele traste. Naquela mesma segunda-feira, Rebeca juntou suas roupas, pegou o carro e se meteu no asfalto, ao encontro de Nosor, o amor adolescente dos tempos da catequese e com o qual mantinha tórridos encontros ocasionais ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Nabucodonosor, macaco velho, também tinha sua “Rebeca”. A esposa, a dona do seu sim diante do Altíssimo, a rainha do lar, aquela com quem Nosor teve seus quatro filhos, todos batizados diante do mesmo Altíssimo, também sabia que o marido, bicho homem que é, tinha suas escapadelas de marinheiro – ou caixeiro viajante, que dá na mesma. O que a esposa não sabia, posto que não foi investigar, é que os encontros bimestrais dos Seresteiros da Colina, grupo do qual Nabucão, como era conhecido entre os seus, participava, eram na realidade com constância, digo, Rebeca. No quilômetro trezentos e oitenta e um, na suíte vinte e sete do Motel Meia Nove, Rebeca e Nosor juraram, imersos numa Jacuzzi de asseio duvidoso, quebrar suas juras de amor para com seus cônjuges (e para com o Altíssimo, obviamente) e foram viver, agora, seu verdadeiro amor em uma choupana na remota Lagoinha, escolha de Beca, como Nosor, Nabucão, a chamava. Dizem que o ex-marido pediu baixa do Tênis Clube Raqueteiros e hoje em dia dedica-se a organizar reuniões dominicais para falar dos milagres do Ômega Três. A ex-mulher, dessa nada se soube. Constança casou-se com um húngaro bem de vida e desfruta dos prazeres do Velho Mundo. Nosor acha que Beca anda de flertes com um antigo amor dos tempos da faculdade, que calhou de ser oriundo da remota Lagoinha e gerencia a única farmácia da pequena Lagoinha. Rebeca tem certeza que Nosor, à escusa de visitar bimestralmente o padrinho doente, está de caso com a siliconada recepcionista do asilo. Do alto, observando todo esse imbróglio, o Altíssimo se pergunta: onde foi que eu errei?

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Chega chegando…

Deu-lhe um tabefe no meio das fuças que o fez girar, como nos desenhos animados, duas vezes sobre os calcanhares. A técnica infalível que o amigo Gouveia o havia ensinado mostrou-se duplamente desastrosa: expulsou-o do Lajota’s e trincou-lhe o molar esquerdo. Mas, não foi essa a história contada na cadeira da dentista. Ali, enfeitiçado pelos olhos de esmeralda da jovem Marissol, atribuiu a causa do seu infortúnio odontológico a uma bela raquetada. Sabemos de longa data que Adolfo jamais pôs os pés numa quadra de tênis e que o mesmo sequer saberia diferenciar uma bola de pingue-pongue de uma bola de gude. Aquela era mais uma oportunidade para o exercício da sedução, arte na qual Adolfo, cinquenta e dois anos, divorciado há três, era aprendiz. Quando jovem, Adolfo viveu isolado da humanidade em numa estação de estudos climáticos na Antártida. Mentira! Mas era assim que Adolfo justificava a ausência de suas narrativas apimentadas sobre aventuras romântico-selvagens de um adolescente na efervescência dos hormônios. Logo na juventude, aos 20 anos, Adolfo casou-se com Juliana, a mulher que sorveu-lhe à canudinho trinta e dois anos da vida e, sem delongas, o abandonou dois dias antes do cruzeiro de bodas de sei lá o quê. Deixando de lado detalhes de sua infância, pois das criancinhas é o reino dos céus, Adolfo foi, talvez, o cara mais sem sal da face da Terra.  E assim estávamos, quando Gouveia apareceu na sua vida. Era uma tarde de outono e Adolfo fazia o seu jogging de todas as tardes na pista do Campolim. Outono? Me parece que era verão… Pois bem, pouco importa, afinal Adolfo inventou essa de jogging apenas para ver as coxas torneadas em calças legging e os seios apertados em tops de lycra. Corria exatos vinte metros e parava para longos alongamentos de rabo de olho que radiografavam os corpos fitness de meninas que bem poderiam ser suas filhas. Havia também as coroas. Tiazonas da mesma idade que Adolfo, com corpos recauchutados nas oficinas de crossfit que deixavam algumas novinhas no chinelo. Mas Adolfo sabia que, nessa idade e com aquelas curvas, suas contemporâneas eram doutoradas na arte de destruir corações incautos de adolescentes cinquentões como ele, coisa para a qual as jovenzinhas fitness, para o bem da espécie humana, ainda eram meras estagiárias. Chega chegando, disse o Gouveia. Adolfo não soube se era com ele. É, maluco, você! Chega chegando. Essa coisa de galanteios é do tempo do zagaia e já não funcionava nem com o zagaia – que, diga-se de passagem, nem era uma pessoa. Apesar do olhar lascivo e pinta de tarado, Adolfo era fã do Roberto, logo amante à moda antiga. Chegava nas moçoilas com galanteios e flores arrancadas dos canteiros do parque. Inspirava-se no J. G. de Araújo Jorge para recitar rimas românticas com a finesse de um Clark Gable. Tudo errado! Chega chegando, disse de novo o Gouveia, coisa que Adolfo interpretou como “mostra a chave da BMW e chama pra tomar uma água de côco na jacuzzi do apê em Maresias”. A morena de corpo escultural olhou para a chave do BMW ano 1998 com desdém, deu dez passos e, virando-se para Adolfo, piscou-lhe um olho enquanto um Jaguar F-só-deus-sabe-qual piscava as setas em resposta ao controle remoto. Porra, Adolfo! Essas minas tem carros desde os quatorze anos. Tu tem que chegar chegando! Saca só. Gouveia acercou-se de uma ruiva que Adolfo jurava que havia escorregado do Olimpo para aTerra por descuido dos deuses. De inicio ela revirou os olhos, mas Gouveia aproximou-se e sussurrou-lhe uma meia dúzia de palavras ao pé do ouvido. O sorriso que se seguiu foi uma das coisas mais espantosas para Adolfo. Ambos caminharam para o Fiat Uno 1.5 Turbo ano 1987 do Gouveia e sumiram pelas curvas da Raposo Tavares. Na tarde seguinte, Adolfo esquadrinhou toda a pista de caminhada do parque Campolim em busca do Gouveia. Nada. Encontrou-o três dias depois, inadvertidamente, no Lajota’s. Qual é, Gouveia? Como é que se faz? Chega chegando, Adolfo! Depois de algumas doses de Chivas, Gouveia deixou escapar um ou dois segredos. Adolfo, embebido de animo e uísque, partiu para a Louraça Belzebu feito um Exocet, e o resultado, já sabemos. Embriagado, desta vez, com o absinto daqueles olhos verdes, Adolfo respirou fundo. Enquanto Marissol dizia-lhe sobre os detalhes do tratamento de canal que seria necessário para restaurar o molar de Adolfo, este mentalizou as palavras do grande Gouveia: chega chegando. Ao longe, trombetas celestiais puderam se ouvir. Quando Marissol se debruçou para amarrar o babador no pescoço de Adolfo, este sussurrou-lhe uma meia dúzia de palavras ao pé do ouvido. Quatro e quinze da manhã, Deoclécio, porteiro do Edifício Sol e Mar, em Maresias, recebe a décima ligação de moradores incomodados com os ruídos selvagens vindos do apartamento do Adolfo. Pensou em discar o 608, mas conhecia Adolfo desde o seu primeiro verão como porteiro do edifício. Deoclécio tirou o interfone do gancho e se ajeitou para um doce cochilo.

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Volcano…

Durval achava que essas coisas só aconteciam nos filme. Filmes daqueles, de sessão da tarde. Daqueles do Jerry Lewis, do Steve Martin ou do Adam Sandler – a depender da sua idade, caro leitor. Naquela tarde Durval teria que entregar o trabalho final, um ensaio sobre as possibilidade de uma Educação para além do Capital. Foram três meses escrutinando a obra do Mészáros. Três meses de tortura, afinal, Durval era o mais fervoroso defensor de uma educação mercadológica. Caíra num Grupo de Trabalho marxista por um desses infortúnios de quem precisa cumprir, a qualquer custo, com os créditos e prazos para a defesa de sua dissertação. Intitulada “Educação 2.0: transformando velhas olarias em negócios inovadores”, sua dissertação era motivo de chacota entre os seus colegas e  professores do GT. Seu orientador já havia declarado: Durval, isso é suicídio acadêmico. Ignorando que remava contra a corrente materialista histórica, Durval reuniu forças e fez o ensaio de sua vida. Rebateu categoricamente todos os argumentos do velho húngaro e preparou-se para a peleja daquela tarde como um moinho de vento frente a dezenas de queixosos Quixotes. Faltando cinquenta minutos para as quatorze horas, Durval achou por bem forrar o estômago não com uma, mas três apetitosas empadas de frango da cantina da Dona Pompéia. Chegado a uma ardência, Durval não economizou no molho de pimenta, cuja receita secreta Dona Pompéia não revelava nem sob tortura.  Saciado e confiante nas palavras que diria durante a sua exposição, Durval palitava os dentes quando a primeira pontada fez tremer a banqueta na qual repousava o esqueleto. A segunda pontada foi derradeira. Em coisa de três ou quatro passos, Durval venceu os 50 metros que o separava do sanitário masculino. A terceira pontada já se fazia sentir nas entranhas quando Durval, pobre Durval, cometeu o erro mais básico de toda a história dos usos de sanitários: entrou, travou a porta, arriou as calças, deixou que a natureza seguisse seu curso e, depois cinco minutos de sucessivas erupções escatológicas, verificou que não havia papel higiênico. Enxugou o suor da testa na barra da camisa e, de forma calculada, moveu o quadril o suficiente para ver que o estrago provocado pelas apetitosas empadas de Dona Pompéia deixavam o Vesúvio no mesmo patamar de uma acne adolescente. Faltando vinte e cinco minutos para o início das apresentações, Durval percebeu que uma tentativa de vistoriar os demais compartimentos do sanitário em busca do rolo de papel sagrado teria como efeito colateral um rastro de lava pegajosa  – se é que vocês me entendem. Durval corria o risco que alguém entrasse no sanitário, coisa que certamente levaria o incauto cidadão a, no mínimo, intoxicação por gases letais. Tendo como única fonte de celulose aquelas quatro páginas do ensaio que vieram à reboque na corrida ao sanitário, Durval deixou uma lágrima escapar-lhe pelo olho esquerdo. Fez os cálculos necessários e compreendeu que seria impossível uma assepsia com base nas páginas do seu ensaio. Não havia tempo hábil para  imprimir uma nova cópia do mesmo antes das quatorze horas. A mochila repousava na mesa da cantina e dentro dela o pendrive com o arquivo do Word. A livraria ficava noutro bloco. Para ajudar, lembrou-se que gastara seus últimos tostões nas apetitosas empadas, o que o deixava só com as cuecas. Cuecas! Claro. Durval já considerava se valer da cueca samba-canção para o processo de assepsia quando se lembrou do bordado cuidadosamente feito por sua querida mãe, Dona Lavínia. Desde garoto, Durval tinha o nome bordado em todas as suas roupas. Já adulto, o hábito prosseguiu ao menos nas cuecas, único item do vestuário de Durval cuja aquisição que ainda estava sob a responsabilidade materna. Se a cueca fosse descoberta, seria praticamente uma dupla confissão. Sentiu que outra lágrima lhe escapava do olho esquerdo. Faltando sete minutos para as quatorze horas, num ato de desespero, arrancou a dentadas o bordado, rasgou a cueca em três e desfez o estrago. Meteu todas as provas materiais daquela história no saco da lixeira e deu-lhe um nó para que nenhum arqueólogo fosse lá bisbilhotar. Acionou a descarga e deixou a água correr mais do que qualquer ambientalista aprovaria. Saltou para fora do compartimento, lavou as mãos com os trezentos e quinze mililitros de sabonete líquido que restavam no dispensador. Repetiu o processo com os duzentos e trinta e oito mililitros de álcool gel e, com a sua melhor cara de nada, respirou fundo (o que foi uma péssima ideia). Saiu do sanitário meio tonto, deu a volta numa das colunas, cortou por detrás de umas mesas, saltou por uma pequena grade e, como se viesse do lado oposto ao que estava, recolheu sua mochila com um minuto de folga para as quatorze horas. Notou que alguém entrava a passos largos no sanitário e gelou. O ensaio! Meu deus, o ensaio! Na ânsia de livrar-se daquele pesadelo, havia deixado o ensaio sob a pia. Tremeu. Duas lágrimas escaparam-lhe, cada uma por um dos olhos. Aceitou o seu destino e subiu para a sala de aula. Sentou-se ao fundo. Eram duas e trinta e cinco quando o professor Peçanha entrou na sala. Alegou um contratempo de última hora para justificar seu atraso. Com cara abatida, dispensou todos e pediu-lhes que os ensaios fossem entregues na próxima semana, exceto o do Durval, o qual já havia lido e que, diante das circunstâncias, merecia nota dez.

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Madrid…

Depois de percorrer mais de seiscentos quilômetros de carro, parando em um pueblo ou outro, chegamos a Madri. Era tarde, mas ainda tívemos ânimo para andar um pouco e tomar unas copitas. Já passava da meia-noite quando finalmente nos instalamos no hostel. Da janela do quarto se podia ver o movimento dos carros na grande avenida de uma cidade que nunca para. Lá do alto do oitavo andar, pude ver que do outro lado da avenida havia uma tienda de guloseimas aberta. Decidido a comprar uns chocolates para suprir as cotas de energia que seriam necessárias para percorrer as ruas e os encantos de Madri na manhã seguinte, vislumbrei a possibilidade de por em ação o meu espanhol sem a supervisão dos meus primos ibéricos. Seria um vôo solo entre estranhos, sem a cumplicidade e caridade dos parentes frente ao meu portunhol do dia-a-dia. Desci pelo elevador e passei em frente ao sonolento recepcionista armado de meu buenas noches, que não reverberou diante da peleja deste com suas palpebras.  Já na rua, o ar frio de dezembro aqueceu minha incursão comunicacional. Atravessei a rua e caminhei alguns poucos metros até a porta da tienda. Li alguns dos cartazes colados no vidro com preços de chocolates e pastilhas de menta. Lá dentro, o vendedor me olhava desconfiado. Inspirei o ar gelado, ergi a gola do casaco e entrei triunfante e portando do meu melhor sorriso. Finalmente: ¡Buenas noches, caballero! Arqueando as sobrancelhas, o vendedor me devolveu o sorriro com um sonoro oxênti meu rei, brasileiro? Assim, onde a Ipiranga cruza com a avenida São João, terminou minha incursão solo pelo castellano. Raimundo era seu nome. Baiano de pai e mãe e como o nome já vaticinava, Raimundo era cidadão do mundo. Havia estado em mais cidades que a minha mente atordoada pelo inusitado encontro pode reter. Milão, Paris, Lisboa, Londres, Dublin, Berlin, Praga… Raimundo passou os primeiros três, dos vinte e dois que já levava na Europa, perambulando de emprego em emprego, de cidade em cidade. Dominava el castellano, arranhava o frânces, o inglês, o italiano e patinava no alemão. Alemão que ele julgou ser a minha língua quando me viu ainda fora da tienda. Meu rei, quando te vi entrando com essas alturas todas, pensei cá comigo, lá vem um lemão. E alemão é lenha de entender, segundo o meu amigo Raimundo. Tão logo notou que o gigante que ali estava de alemão não tinha nada, pulou para o lado de fora do balcão e me deu um daqueles abraços que a gente só dá em gente querida. Conversamos sobre sua trajetória. Vivendo a vinte a tantos anos no estrangeiro, fazia cinco anos que Madri era a sua cidade. Cidade onde seu filho mais novo arrumou uma esposa e lhe deu dois dos sete netos. O filho mais velho vivia na itália e o do meio voltou para a Bahia de Nosso Senhor atrás de um rabo-de-saia. Contei-lhe sobre a minha família e sobre meus avós, que em rota contrária, de Barcelona acabaram fazendo a vida numa Sorocaba que eu, tolo, julguei desconhecida para o internacional Raimundo. Sorocaba, meu rei? Ôxi, meu cunhado mora ali pertinho, em Itu, cidade das coisas grandes, segundo meu amigo Raimundo. Fiquei com medo de perguntar quem seria o seu cunhado, temendo que em algum momento o nosso colóquio nos revelasse que o mesmo fosse meu ex-aluno. Animado com a minha presença, saimos para o frio da calçada onde Raimundo acendeu um cigarro. Fuma, meu rei? Neguei. Faz bem, isso aqui ainda vai me matar. Entre uma tragada e outra, enquanto a fumaça traçava rodopios com a brisa gelada, Raimundo me deu algumas dicas sobre a cidade que ele conhecia tão bem. O ar frio contrastava com o calor daquela conversa. De volta ao interior da tienda, mostrou-me fotos dos meninos com a camiseta do Real Madrid – que meus parentes catalães não me leiam! Quando a conversa começou a ficar nostálgica demais, com os olhos embotados, Raimundo, fazendo jus ao seu comércio, finalmente perguntou em que ele poderia me ajudar naquela fria noite de dezembro. Uma garrafa de água, dois chocolates e um pacote de pastilhas de alcaçuz. Quando fiz menção de tirar a carteira do boldo, Raimundo interveio: é por conta da casa, meu rei. Depois de outro abraço caloroso, atravessei a rua com Raimundo às minhas costas, acenando sorridente. Antes de entrar no hostel, deixei que o ar frio inundasse meus pulmões numa longa inspiração. Olhei para o outro lado da rua e Raimundo já havia voltado para o seu lado do balcão e folheava um jornal qualquer. Na recepção do hostel, o atendente dormia sentado, com a cabeça pendida para trás, feito um iogue ou contorcionista. Passei em silêncio e deixei que o elevador me levasse ao merecido sono.

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Genésio…

Sentou-se à soleira da porta. Observou as gotas de luz que respingavam a sua frente. Milhares de pequenos pontos luminosos espalhados pela geografia do morro. Bateu o pó das sandálias com as mãos. Notou que uma das fivelas já dava sinais de desgaste, logo arrebentaria. Notou pequenos cortes no calcanhar. Notou os calos nos dedos da mão. Estendeu-a, deixando-a entre seu rosto e as luzes da favela. Observou nas costas da mão as veias saltadas. Podia sentir o sangue que lhe corria cansado. Virou-a e observou sua palma. As linhas desenhadas pela biologia disputavam espaço com as cicatrizes de farpas de madeira. Na lida diária, Genésio era operário na obra de grande edifício, um desses arranha-céus que Genésio só subirá enquanto houver andaimes e pontaletes a sustentar a estrutura que mais dia, menos dia, ganhará também um sem fim de luzes salpicadas pelos trinta e dois andares. Andares pelos quais Genésio não andará mais. Quando estiver pronto, dizia o encarregado da obra, um engenheiro gordo de pele oleosa e pastosos cabelos grisalhos, quando estiver pronto aqui só vai frequentar bacana. Genésio, que não tem onde cair morto, não acreditou quando alguém lhe disse quanto custava cada torneira chiquetosa, daquelas automáticas, que Jordão, um dos encanadores, instalaria nos quarenta e sete banheiros. Genésio não frequentou a escola, logo não sabia multiplicar. E, sejamos francos, nem precisava. O preço unitário de cada torneira em si já ultrapassava a soma que ele ganhava em cada mês de labuta na grande obra. Solteiro, Genésio vivia num canto do barraco do seu Nazaré, canto que lhe custava quase a metade do salário. Preto, pobre, analfabeto e, como dizia Dona Madalena, feio como um satanás, Genésio não via poesia nas luzes que salpicavam aquele cair de noite no morro. Enquanto olhava sua mão estendida a sua frente, pensava admirado, como pode uma torneira custar tanto! Fazia no ar movimentos de torção, como quem girasse uma torneira imaginária, sem saber que no caso daquelas pequenas fortunas, não era necessário girar, bastava deixar as mãos a sua frente e a água vinha como por mágica. Jordão tentou explicar-lhe, mas Genésio só conhecia torneira de girar, daquelas que gotejam a noite toda, daquelas que rangem e emperram dia sim, dia também. Torneiras automáticas de mais de mil reais eram coisas que estavam muito além da compreensão de Genésio. Na manhã seguinte, antes mesmo do gole de café-com-leite e um filão com manteiga que a empreiteira oferecia aos operários, Genésio intimou Jordão: quando estiver instalada, você me mostra? Jordão baixou os olhos, resmungou que sim mesmo sabendo que naquela tarde o engenheiro gordo de pele oleosa e pastosos cabelos grisalhos iria demitir trinta e cinco operários, inclusive Genésio, cujas mãos grossas, ásperas, calejadas já não eram mais necessárias. Seu Nazaré pôs anúncio na venda do velho Pedro, vagou um canto. Dona Madalena achou uma sandália arrebentada perto do tanque. A torneira gotejava pequenas lágrimas…

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Meninos Insanos…

Naquela época, corríamos feito loucos pelos trilhos da ferrovia. Longe dos olhos e das tecnologias, no limite da molecagem, pegávamos rabeira no trem. Do pontilhão próximo à antiga Villares, seguíamos até os fundos do Shopping Sorocaba, uma viagem cheia de aventuras. Não sabíamos o que significava a palavra adrenalina, apenas a tínhamos correndo pelas veias. Insanos, dia desses vi uns meninos insanos pegando rabeira no trem. Ah, a velhice nos atinge em cheio. Ou seria a covardia? Trinta e tantos anos depois, eu, no conforto do ar condicionado do carro, ouvindo um velho rock, observava os meninos dependurados, cabelos ao vento, sem o menor pudor, sem o menor cuidado. Menores vivendo suas vidas intensas de adrenalina, ainda que eles sequer saibam lá o que isso signifique. Insanos, pensei. Como éramos insanos, como são insanos. Me lembro de que lá do alto dos trilhos, agarrado ao vagão, vagávamos olhado os carros que nos olhavam. Em algum momento, ainda que a minha memória falhe, vislumbro o olhar de um homem que prestava atenção em mim, um olhar do conforto do seu carro, ouvindo um rock bem recente, talvez sem ar condicionado. Aquele homem que me mirava nos tempos da meninice agora me mira do alto da sua rabugice. Insanos! Ainda que os tempos fossem outros, sem centenas de canais de TV, sem gigabytes de informações, sem redes sociais, éramos inconsequentemente insanos. Como diz meu irmão mais velho, somos sobreviventes. Apesar de tudo, sobrevivemos. Difícil não olhar para trás com um certo saudosismo, éramos insanos, éramos felizes. Depois do passeio clandestino, uma tubaína dividida em seis copos e lanches de mortadela num bar qualquer, ao lado de bêbados inveterados e um dono de boteco mal-humorado. Sobreviventes, não sei quem são aqueles meninos insanos que vi dependurados no trem. Serão felizes? Sobreviverão? Quem sabe, um deles, lá na frente, seja um terráqueo a escrever suas crônicas. Quem sabe um deles seja publicitário, sambista, bancário, caminhoneiro ou, quiçá, seja assassinado com tiros na frente de um bar. Difícil olhar para o passado apenas com olhos marejados pelos bons tempos. Bons, com certeza, porém insanos. Arrisco dizer que o homem que me olhava de dentro do seu carro naquelas tardes juvenis e o menino que hoje se dependura insanamente no trem que corta a minha visão são a mesma pessoa. O tempo perde o sentido nas memórias, são os sentimentos impressos com tinta de adrenalina nas veias que dão o tom dessas memórias insanas. Insanos…

Rodopios…

A garota de cabelos ruivos rodopiava por entre as araras cheias de roupas. Sentia as texturas com as pontas dos dedos esticados, sorria para si ao se imaginar vestida com uma peça ou outra. Às vezes detinha-se diante de um peça e, entrelaçando as mãos com ares de cartomante, punha-se a imaginar as combinações possíveis entre blusas, saias, sandálias. Pensou no garoto do fundo da sala, aquele para quem lançava olhares esperançosos de recíproca. Imaginou-o enroscado com ela entre os lençóis de fio egípcio do setor de cama, mesa e banho. Perdida em memórias sobre o futuro, seu olhar cruzou com o olhar, refletido no grande espelho, de um homem que a observava da mesa do café. O computador aberto e uma xícara de espresso acompanhavam-no numa cena que a remeteu a um velho filme estrangeiro que assistiu nas aulas filosofia. Feliz, pelo mesmo espelho que a refletia, entregou-lhe um sorriso gentil. Ele baixou os olhos para a tela, talvez encabulado pelo encontro de olhares, e voltou a digitar sobre os rodopios da garota de cabelos ruivos. Quando pequena, perdeu-se da mãe numa dessas idas ao centro. Na confluência dos corpos que se movimentavam pelo calçadão, mãos de mãe e filha se desligaram por poucos segundos. A mãe pensou que a filha entrara na loja de roupas, a filha pensou que a mãe fora para a loja de sapatos e, sem se darem conta, cruzaram cada qual para o lado oposto. Depois de vários minutos de angústia, se reencontraram no mesmo ponto em que haviam se separado. Noutra ocasião, ainda meninota, entre amigas da escola, foi desafiada a roubar um batom da moda. No mesmo calçadão em que se perdera da mãe, aprendeu a dura lição. Pega pelo segurança da loja, passou meia hora à espera da mãe e do sermão que esta vinha ensaiando à caminho da loja. Às amigas, no dia seguinte, restou-lhes o olhar de decepção. Terminou o parágrafo e buscou, novamente, o olhar da garota de cabelos ruivos. Procurou-a nos reflexos das colunas espelhadas, buscou seus rodopios por ente as araras de roupas, seguiu com os olhos as filas dos caixas e nada. Impresso na sua memória, o sorriso gentil aqueceu o último gole do espresso gelado. Fechou o computador, pagou a conta no café e seguiu para o estacionamento num leve caminhar, sem suspeitar que o olhar da garota de cabelos ruivos o acompanhava de longe. Sentada no quiosque de sorvetes, entre uma colherada e outra do seu sunday de morango, ela se questionava sobre que coisas o homem de cabelos castanhos escrevia naquele computador.

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