Seu nome era Cássio, ou Tássio. Tarso talvez, eu não me recordo bem. Já tive tantos alunos, tantos nomes diferentes. Acho que era Cauê, ou Cauã. Difícil saber, não tenho registros documentais desse momento. Pois bem, ele teria os seus doze ou treze anos quando sua mãe me ligou em resposta a um anúncio nos classificados do jornal. Aulas de informática? Sim. Particulares? Sim. E o que se aprende nessas aulas? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Basic e Pascal, senhora. Do outro lado da linha, um silêncio. Aquele amontoado de palavras parecia conversa de iniciados em alguma sociedade secreta. Quantas vezes por semana? Duas. Qual o valor? A mensalidade é de 50 URVs – eram os anos de transição, mais um pacote econômico, os cruzados novos ficavam antigos e davam lugar às Unidades Reais de Valor, predecessora do Real. O que ele vai aprender mesmo? MS-DOS, Wordstar, Lotus 123 e programação em Quick Basic e Turbo Pascal – acrescentei duas palavras novas para ser mais enigmático ainda. Três dias depois, em horário combinado, o menino apareceu. Para ser mais preciso, o menino cujo o nome me foge, chegou com o motorista particular. Desceu, entrou no pequeno cômodo que abrigava dois IBM-PC, um PC-AT 386, um MSX 2.0 todo hackeado e um Commodore Amiga 500 ligado a um monitor VGA saído de um filme de terror. Estendi a mão para cumprimentá-lo, ele estendeu-me o cheque, a primeira mensalidade, 50 URVs convertidas ao valor do dia. As aulas seguiram-se por alguns meses e, para a minha alegria, os cheques também. Eram tempos curiosos, eu tinha dezoito anos, cinco anos a mais que o pequeno sem nome, mas o tempo voava. Vencemos o DOS, o Wordstar, o Lotus 123 e caímos no admirável mundo novo das linhas de código, as variáveis, laços de repetição. O primeiro programa foi um jogo de forca. O enforcado era um conjunto de caracteres. Se o jogador errasse a palavra, a cabeça, que era uma letra o maiúscula, se transformava num asterisco. O garoto levava jeito para a coisa. Certa vez ele me disse, você pode ir lá em casa? Seu pai havia comprado um computador novo, perguntou se eu poderia ir lá, instalar. Embora o menino pudesse fazer isso sozinho, acredito que o pai não acreditava que o seu moleque de treze anos pudesse realmente fazê-lo, tantas URVs investidas em tantos meses e a pouca idade ainda pesava contra. Talvez fosse receio de que um cabo ligado errado resultasse em prejuízo, computadores nessa época eram muito caros se comparados com os de hoje em dia. Viviam em um luxuoso apartamento no centro da cidade. O pai era médico. A mãe eu não sei o que fazia, arquiteta talvez, mas eu nunca soube. O motorista foi me buscar em casa, me senti um lorde. O senhor usava quepe. As únicas pessoas que usavam quepes que eu conhecia eram policiais, como o meu pai. Fui recebido como um mago, o guru dos computadores. O pai foi extremamente gentil, mesmo quando soube que eu tinha dezoito anos e que estava terminando o ensino médio. Nerds, ouvi a mãe dizer em voz baixa para o marido. Desempacotamos o computador. Monitor, CPU, cabos, teclado, mouse. Deixei tudo sobre a mesa e, sob o olhar atento do pai e da mãe, disse ao garoto, quer montar você? Os olhos dele brilharam! Sempre me dirigindo um olhar de confirmação antes de conectar cada coisa, o menino ligou todos os componentes e em poucos segundos o cursor da linha de comando do MS-DOS piscava na tela do monitor VGA, infinitamente melhor que o meu. Juntos, instalamos todos os programas que ele aprendeu a usar no curso. A mãe sorria feliz de ver que as URVs tinham sido bem empregadas. O pai, tenho certeza, pensava o óbvio, quem montou o computador foi o filho, mas eu ainda assim cobraria pelo apoio espiritual. Antes de me despedir e receber o último cheque, agora acrescido da visita técnica, a mãe, educadíssima, me perguntou, fica para jantar? Eram quase 18h e eu ainda seguiria para a escola, terminar meu ensino médio. Jantar? Claro! Amigo leitor, amiga leitora, nem tudo nessa vida são flores. Sentamo-nos todos à mesa. O pai me serviu um copo de suco de maracujá. Natural! Nada de suquinhos em pó. A mãe apareceu com uma grande bandeja, berinjelas à parmigiana. BERINJELAS. BE-RIN-JE-LAS. Ciente de que teria de manter a pose e não fazer feio na frente de gente tão gentil, mirei na menorzinha, afinal, dos males, o menor. Falhei, a maior berinjela me foi imposta, eu era visita. Eu não gosto de berinjela. Gosto de queijo, gosto de molho de tomate, mas aquela mastodôntica berinjela era um nó górdio. Contrariando a minha visão de mundo, todos naquela casa não apenas gostavam de berinjelas, eles adoravam. A primeira garfada foi cruel. Meio copo de suco para fazer descer a leguminosa maldita. Puxei o queijo de lado, deixá-lo-ia para o final, para tirar da boca o gosto berinjélico. A segunda garfada fez secar o que restava do suco. Mais um copo, Edgar. S’il vous plaît, Mademoiselle. E assim, de meio copo em meio copo de suco, a berinjela foi toda para o bucho. O queijo do final não ajudou, estava impregnado de berinjela. Um gole final de suco, dei a desculpa que eu teria prova e não poderia me atrasar. Despedi-me imensa e felizmente agradecido pelo delicioso jantar. O motorista foi cortesia apenas para a ida. No meio do caminho comprei uma água tônica e fui fazendo gargarejos até chegar na OSE. Vendo meu semblante de poucos amigos, Moura, o bedel, perguntou, e essa cara de quem comeu e não gostou? Sentei-me no degrau da escada ao lado da sua mesinha e contei a minha epopeia berinjélica. Até hoje posso ouvir as risadas do Moura…
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Madrid…
Depois de percorrer mais de seiscentos quilômetros de carro, parando em um pueblo ou outro, chegamos a Madri. Era tarde, mas ainda tívemos ânimo para andar um pouco e tomar unas copitas. Já passava da meia-noite quando finalmente nos instalamos no hostel. Da janela do quarto se podia ver o movimento dos carros na grande avenida de uma cidade que nunca para. Lá do alto do oitavo andar, pude ver que do outro lado da avenida havia uma tienda de guloseimas aberta. Decidido a comprar uns chocolates para suprir as cotas de energia que seriam necessárias para percorrer as ruas e os encantos de Madri na manhã seguinte, vislumbrei a possibilidade de por em ação o meu espanhol sem a supervisão dos meus primos ibéricos. Seria um vôo solo entre estranhos, sem a cumplicidade e caridade dos parentes frente ao meu portunhol do dia-a-dia. Desci pelo elevador e passei em frente ao sonolento recepcionista armado de meu buenas noches, que não reverberou diante da peleja deste com suas palpebras. Já na rua, o ar frio de dezembro aqueceu minha incursão comunicacional. Atravessei a rua e caminhei alguns poucos metros até a porta da tienda. Li alguns dos cartazes colados no vidro com preços de chocolates e pastilhas de menta. Lá dentro, o vendedor me olhava desconfiado. Inspirei o ar gelado, ergi a gola do casaco e entrei triunfante e portando do meu melhor sorriso. Finalmente: ¡Buenas noches, caballero! Arqueando as sobrancelhas, o vendedor me devolveu o sorriro com um sonoro oxênti meu rei, brasileiro? Assim, onde a Ipiranga cruza com a avenida São João, terminou minha incursão solo pelo castellano. Raimundo era seu nome. Baiano de pai e mãe e como o nome já vaticinava, Raimundo era cidadão do mundo. Havia estado em mais cidades que a minha mente atordoada pelo inusitado encontro pode reter. Milão, Paris, Lisboa, Londres, Dublin, Berlin, Praga… Raimundo passou os primeiros três, dos vinte e dois que já levava na Europa, perambulando de emprego em emprego, de cidade em cidade. Dominava el castellano, arranhava o frânces, o inglês, o italiano e patinava no alemão. Alemão que ele julgou ser a minha língua quando me viu ainda fora da tienda. Meu rei, quando te vi entrando com essas alturas todas, pensei cá comigo, lá vem um lemão. E alemão é lenha de entender, segundo o meu amigo Raimundo. Tão logo notou que o gigante que ali estava de alemão não tinha nada, pulou para o lado de fora do balcão e me deu um daqueles abraços que a gente só dá em gente querida. Conversamos sobre sua trajetória. Vivendo a vinte a tantos anos no estrangeiro, fazia cinco anos que Madri era a sua cidade. Cidade onde seu filho mais novo arrumou uma esposa e lhe deu dois dos sete netos. O filho mais velho vivia na itália e o do meio voltou para a Bahia de Nosso Senhor atrás de um rabo-de-saia. Contei-lhe sobre a minha família e sobre meus avós, que em rota contrária, de Barcelona acabaram fazendo a vida numa Sorocaba que eu, tolo, julguei desconhecida para o internacional Raimundo. Sorocaba, meu rei? Ôxi, meu cunhado mora ali pertinho, em Itu, cidade das coisas grandes, segundo meu amigo Raimundo. Fiquei com medo de perguntar quem seria o seu cunhado, temendo que em algum momento o nosso colóquio nos revelasse que o mesmo fosse meu ex-aluno. Animado com a minha presença, saimos para o frio da calçada onde Raimundo acendeu um cigarro. Fuma, meu rei? Neguei. Faz bem, isso aqui ainda vai me matar. Entre uma tragada e outra, enquanto a fumaça traçava rodopios com a brisa gelada, Raimundo me deu algumas dicas sobre a cidade que ele conhecia tão bem. O ar frio contrastava com o calor daquela conversa. De volta ao interior da tienda, mostrou-me fotos dos meninos com a camiseta do Real Madrid – que meus parentes catalães não me leiam! Quando a conversa começou a ficar nostálgica demais, com os olhos embotados, Raimundo, fazendo jus ao seu comércio, finalmente perguntou em que ele poderia me ajudar naquela fria noite de dezembro. Uma garrafa de água, dois chocolates e um pacote de pastilhas de alcaçuz. Quando fiz menção de tirar a carteira do boldo, Raimundo interveio: é por conta da casa, meu rei. Depois de outro abraço caloroso, atravessei a rua com Raimundo às minhas costas, acenando sorridente. Antes de entrar no hostel, deixei que o ar frio inundasse meus pulmões numa longa inspiração. Olhei para o outro lado da rua e Raimundo já havia voltado para o seu lado do balcão e folheava um jornal qualquer. Na recepção do hostel, o atendente dormia sentado, com a cabeça pendida para trás, feito um iogue ou contorcionista. Passei em silêncio e deixei que o elevador me levasse ao merecido sono.
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Meninos Insanos…
Naquela época, corríamos feito loucos pelos trilhos da ferrovia. Longe dos olhos e das tecnologias, no limite da molecagem, pegávamos rabeira no trem. Do pontilhão próximo à antiga Villares, seguíamos até os fundos do Shopping Sorocaba, uma viagem cheia de aventuras. Não sabíamos o que significava a palavra adrenalina, apenas a tínhamos correndo pelas veias. Insanos, dia desses vi uns meninos insanos pegando rabeira no trem. Ah, a velhice nos atinge em cheio. Ou seria a covardia? Trinta e tantos anos depois, eu, no conforto do ar condicionado do carro, ouvindo um velho rock, observava os meninos dependurados, cabelos ao vento, sem o menor pudor, sem o menor cuidado. Menores vivendo suas vidas intensas de adrenalina, ainda que eles sequer saibam lá o que isso signifique. Insanos, pensei. Como éramos insanos, como são insanos. Me lembro de que lá do alto dos trilhos, agarrado ao vagão, vagávamos olhado os carros que nos olhavam. Em algum momento, ainda que a minha memória falhe, vislumbro o olhar de um homem que prestava atenção em mim, um olhar do conforto do seu carro, ouvindo um rock bem recente, talvez sem ar condicionado. Aquele homem que me mirava nos tempos da meninice agora me mira do alto da sua rabugice. Insanos! Ainda que os tempos fossem outros, sem centenas de canais de TV, sem gigabytes de informações, sem redes sociais, éramos inconsequentemente insanos. Como diz meu irmão mais velho, somos sobreviventes. Apesar de tudo, sobrevivemos. Difícil não olhar para trás com um certo saudosismo, éramos insanos, éramos felizes. Depois do passeio clandestino, uma tubaína dividida em seis copos e lanches de mortadela num bar qualquer, ao lado de bêbados inveterados e um dono de boteco mal-humorado. Sobreviventes, não sei quem são aqueles meninos insanos que vi dependurados no trem. Serão felizes? Sobreviverão? Quem sabe, um deles, lá na frente, seja um terráqueo a escrever suas crônicas. Quem sabe um deles seja publicitário, sambista, bancário, caminhoneiro ou, quiçá, seja assassinado com tiros na frente de um bar. Difícil olhar para o passado apenas com olhos marejados pelos bons tempos. Bons, com certeza, porém insanos. Arrisco dizer que o homem que me olhava de dentro do seu carro naquelas tardes juvenis e o menino que hoje se dependura insanamente no trem que corta a minha visão são a mesma pessoa. O tempo perde o sentido nas memórias, são os sentimentos impressos com tinta de adrenalina nas veias que dão o tom dessas memórias insanas. Insanos…
Ponto final…
Esse ônibus passa na policlínica, perguntou-me a senhora de cabelos brancos e bengala. Antes que eu pudesse dizer que não sabia, uma outra senhora de cabelos brancos respondeu, passa. Aos poucos, vários senhores e senhoras idosos lotaram os bancos. Aqueles mais dispostos, seguiram em pé, assim como eu. Minha mochila foi para o meio das pernas, para não ocupar o espaço que a cada minuto de espera, tornava-se mais escasso. Por fim, ônibus lotado, deixamos o terminal. Eu arriscaria dizer que oitenta porcento das pessoas naquele coletivo estavam acima dos sessenta anos. Ao longo do caminho, mais uns sete ou oito idosos embarcaram. A pergunta inicial, se ele passava na policlínica, fez sentido. Sem fones de ouvido, eu pude ouvir os relatos, as reclamações, os diagnósticos e até mesmo qual medicação é melhor indicada para esta ou aquela dor. Entre assuntos medicamentosos, uma ou outra louvação. Deus e remédio talvez tenham sido as palavras mais ouvidas por mim. Talvez porque sejam sinônimas. Talvez por que uma delas seja o placebo. Devagar, entre trancos e freadas, o coletivo seguiu por ruas que me eram conhecidas. Pude notar fachadas novas, casas que deram lugar a pequenos edifícios, novos comércios e alguns terrenos baldios, desses bons para mandar alguém carpir. Enquanto a audição deleitava-se com o universo vocabular das senhorinhas, umas doces como as vovós dos contos de fadas, outras rabugentas como só uma vida sofrida sabe modelar, os olhos capturavam imagens de uma cidade que sempre foi minha, na qual sempre fui um andarilho. Imerso nesse misto de sons e imagens, o coletivo chegou a tal policlínica, que outrora fora o hospital para o qual eu fui levado quando fui atropelado. Memórias, os aromas da infância, da adolescência, dos primeiros anos da juventude, todos misturados às colônias de alfazema, desodorante Avanço e suor. O ônibus quase que esvaziou, ficamos eu, o motorista e mais uns dois ou três rapazes com pastas nas mãos. O ponto final da linha é na prefeitura, logo, da policlínica até o palácio dos tropeiros, iriamos apenas nós, uma meia dúzia de gente que seguiu silenciosa, cada qual no seu banco. Os olhos ainda escrutinavam a cidade, mas os ouvidos tinham agora apenas os rangidos metálicos do coletivo. Na boca, um gosto amargo se fez intensificar.
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Energético…
O cartaz dizia, de R$ 4,95 por R$ 0,66. Não, você não leu errado. Nem eu. O produto em questão era um energético. 310ml, sabor pêssego. Pêssego? Sim, pêssego. Puxa, sessenta e seis centavos! O que custa sessenta e seis centavos nessa vida? Ai tem, pensei! Verifiquei a validade, vencerá daqui três meses. Noventa dias! Vamos levar. Um? Não, lógico que não. Vamos levar duas caixas. Energético sabor pêssego. Duas caixas, dezesseis latas. Da prateleira para o carrinho, do carrinho para o caixa, do caixa para o carrão, do carrão para a geladeira. Uma lata? Não, lógico que não. As dezesseis latas dividindo espaço com a margarina e a geléia de morango. Quente deve ser ruim, vamos esperar. Esperei, fui fazer minhas coisas. Recolhi a roupa do varal. Lancei algumas notas da universidade. Joguei duas ou três fases do Angry Birds. Já deve ter gelado, oba! Abri a lata, tsss. Tem cheiro de pêssego, ou parece ter. Desde o natal não como um pêssego. Tem cor de pêssego, que é meio cor de laranja, que é outra fruta. Bem, sem mais delongas, dei aquela golada digna de comercial de refrigerante norte-americano. Quente deve ser ruim? Eu me enganei. Quente deve ser horrível, pois gelado era ruim. Amigo leitor, amiga leitora, pare de rir. Deve ser o primeiro gole, a boca ainda trazia o gosto do almoço, um hamburguer de fast-food. Segundo gole, JESUS! Jesus, o messias, não o guaraná cor-de-rosa, que diga-se de passagem, é ruim, mas o energético sabor pêssego é pior. Senhor da glória, lembrei-me de uma das coisas mais horrendas ao paladar que eu já havia provado nesta vida de perdição. Daime, o chá. Chá de Santo Daime. Certa vez, nos tempos da faculdade de Filosofia, uma amiga me convidou a beber o chá. Acesso garantido a mundos fantásticos, ela disse. Eu, cético, recusei. Na minha ignorância, o chá era coisa de ritual religioso, mas ela negou, nada tem que ver com crença, Edgar, o Daime te leva para as ruas de Atenas, ela mesmo alegava conversar com Platão. Platão? Sim, Platão, dizia ela. Em grego? Grego? É, você fala com ele em grego? Não, em português. Ah… Convencido a deixar meu ceticismo de lado, fui ao tal do Santo Daime. Depois de algumas orientações e meia hora de cânticos, chegou a hora de pegar a fila para provar o néctar da ayahuasca. Jesus Cristo! Pense numa água cor de barro que corre pela sarjeta em dia de chuva. O gosto era algo indescritível até alguns minutos atrás. Bem, desnecessário dizer que não encontrei Platão falando português. Acho que eu sou imune ao chá de Santo Daime, se fosse chá de fita, quem sabe… Chá de fita? Sim, chá de fita. Fita K7, ou cassete. BASF era a preferida. Se fosse Chromo 90 minutos, melhor ainda. Eu tinha uns amigos de infância, digo, adolescência, que bebiam chá de fita. O que é que tá gravado nessa ai? Def Leppard. Não, Def Leppard não dá barato, vamos de Grateful Dead, essa sim! Desenrolava-se a fita, colocava-se a fita numa infusão de água quente e depois de quinze minutos, a caneca era compartilhada entre todos. Desnecessário dizer que esses meus amigos devem estar todos mortos. Eu sempre fui cagão, tinha medo de ficar loucão com o chá de fita. Alias, sempre fui cagão para qualquer droga. Ok, álcool é droga, e eu sempre fui chegado numa birita. Mas no máximo flertei com um lança-perfume. Mas já me caguei todo quando um colega, misturando clorofórmio com sei lá o que, derrubou a coisa toda no olho e perdeu a visão. Dai em diante, o chá do Santo Daime foi a minha maior estripulia além do álcool. Mas o chá me decepcionou, nada de ver Platão, unicórnios ou a Magda Cotrofe nua se insinuando e desejando-me – se bem que eu acho que a Magda Cotrofe era dos tempos do chá de fita. Energético de pêssego, o famigerado energético de sessenta e seis centavos, dezesseis latas. Bem, quatorze, na verdade, esta que eu estou tomando enquanto digito esta crônica é a segunda. O negócio é ruim, ruim demais. Acho que vou abrir mais uma. Platão não para de se gabar (em português). Magda Cotrofe colocou uma playlist do Grateful Dead no Spotify e está se esfregando no Platão enquanto um unicórnio está mexendo na geladeira, perguntando se a geléia de morango é diet. Maestro, solta o maracá. Treme a terra, treme a terra. Treme a terra e geme o mar…
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Círculo do Livro…
Certa vez, andando pelos calçadões do centro, encontrei uma simpática livraria. Círculo do Livro, dizia o letreiro. Entrei e passei muitos minutos, quase um hora eu diria, olhando capas, contracapas, lombadas. A atendente, dona de um sorriso ímpar, me deixou à vontade para explorar o peso, o cheiro, a textura dos livros. Dentre centenas de possibilidades, dei de encontro com Drácula. Nessa época, meu interesse pelo oculto, pelo sobrenatural, pelas forças das trevas era pouco mais que uma curiosidade infantil potencializada por filmes de terror que passavam no fim de noite. Drácula, a figura do vampiro, do conde de olhos fundos, nariz afilado, queixo anguloso e cabelos empastados de gomalina — impossível não lembrar dos saudosos Bela Lugosi e Christopher Lee — me chamou atenção. Escrito por um tal de Bram Stoker, a capa ilustrada com um clássico conde Drácula prestes a morder o pescoço de uma bela mulher em decotes provocantes foi fator decisivo para que eu conduzisse a mim e ao livro ao balcão. Vou levar, eu disse com convicção, mesmo que eu sequer tivesse atentado para o preço. E o preço sequer foi problema, o problema foi a pergunta feita pela moça do sorriso bonito: qual o seu código de associado? Associado? Sim, o Círculo do Livro é um clube de leitores e as obras são vendidas apenas aos associados. Mas eu não sou sócio, respondi embebido pelo embaraço. Você é maior de idade, perguntou-me já sabendo, pelo rubor do meu rosto, que não. Eu poderia fazer o seu cadastro, mas é preciso ser maior de idade. Drácula escorregava pelas minhas mãos enquanto minha cabeça baixava. Murmurei um obrigado e, sem conseguir olhar para a moça, e arrastei-me para a saída. Pode parecer bobo, mas aos 16 anos de idade, aquela fora a primeira vez que eu me interessei por um livro espontaneamente. Tudo o que tinha lido até então havia sido por obrigações escolares. Drácula não, Drácula foi puro desejo. Antes que eu abrisse a porta, a moça me chamou. Posso passar ele no meu cadastro de funcionária, assim você pode levar o livro. A imagem dela sorrindo e me estendendo o livro deveria ter sido o suficiente para eu tê-la pedido em casamento, mas eu era apenas um garoto que como poucos, gostava de Ramones e computadores de 8bits. Ela fez os tramites burocráticos e, por fazer a venda como se fosse para ela mesma, obtive o desconto de funcionários. Paguei o livro, disse o obrigado mais sincero que a minha antissocialidade permitiu e corri para o ponto de ônibus. Até hoje não sei o nome dela. Nunca mais a vi. Drácula continua até hoje na minha estante. O primeiro de algumas centenas de livros que passei a devorar por vontade, por curiosidade, por prazer… Obrigado, moça do sorriso ímpar!
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Quermesse…
A quermesse do bairro, em épocas juninas, trazia consigo o cheiro de pólvora. Como todos os garotos da rua, pelas manhãs de domingo íamos ao catecismo. Ouvíamos estórias dos tempos do zagaia. Numa delas, um cara barbudo saia distribuindo chutes e ponta-pés nos comerciantes do templo. Alguma coisa que ver como fazer negócios no entorno da igreja. Depois da catequese, íamos à missa. Mais estórias. Durante o resto do do domingo o protocolo era sempre o mesmo. Macarrão da mama, coca cola da mercearia do Mingo, pudim de leite da vó. Trapalhões, programa Silvio Santos. Repeteco do pudim de leite da vó. A noite, no entorno da igreja, toda sorte de barraquinhas vendiam guloseimas e diversões. Pesca, roleta, cuscuz, arroz-doce, quentão. Três quarteirões antes da igreja, numa minúscula lojinha mal iluminada, um arsenal de bombinhas, traques, busca-pés, rojões e biribinhas. Fogos caramuru não dá xabú, esse era o lema. Dos dez cruzeiros ganhos, cinco eram suficientes para encher os bolsos daqueles objetos do terror. Bolsos que poderiam por si só mandar para os ares umas tantas latinhas de extrato de tomares, tamanha era a quantidade de pólvora que neles ficava depositada. Munidos do pequeno arsenal bélico, nos embrenhávamos por entre os adultos. Uma rodinha, alguém acendia o isqueiro, a combustão do pavio dispersava a roda rapidamente. Três, dois, um. BUM. Jesus-Maria-José! O estouro sempre assustava as beatas compenetradas no giro da roleta. Algum adulto logo identificava os terroristas mirins apontando-nos o dedo seguido de palavras se só podiam dizer no lado de fora da igreja. Na periferia da festa, fuçávamos as latas de lixo em busca de módulos lunares. Uma “das fortes” era posicionada na guia de paralelepípedos. Sobre ela, uma lata de pomarola estrategicamente colocada de forma a absorver em seu interior a potência da explosão. Mais uma vez o isqueiro roubado do maço de cigarros de algum familiar entrava em ação. Três, dois, um. É, deu xabú! Desde a mais tenra idade já sabíamos o sentido da expressão propaganda enganosa. Pega outra. Aperta o fundo, pra garantir. Duas voltas de durex, para potencializar. Agora vai. Isqueiro, cadê o isqueiro. Ajeita a latinha. Três, dois, um. BUUUM. Feito engenheiros da Nasa, comemorávamos os talvez dois ou três metros de vertiginosa subida da lata de pomarola. Um pequeno estrondo para a humanidade, mas uma baita diversão para a molecada. Moleques lazarentos. Huston, temos um problema. A lata, na sua reentrada na atmosfera, atingiu a motoca de alguém. Correria. Como vietcongs, embrenhávamo-nos por debaixo das barracas, camuflados por toalhas de renda. Dissipado o quiprocó, juntávamo-nos na curva da escadaria de acesso à igreja para contabilizar o arsenal. Eu tenho três da forte e duas da fraca. Eu tenho duas fortes. Eu tenho quatro busca-pés e três da fraca. Enquanto as meninas prendadas distribuíam as prendas na barraca de pesca, pescávamos toda sorte de coisas para explodir. Tubo de plástico, lata de óleo, tijolo baiano, casca de banana. Os estouros se ouviam aqui e ali sempre seguidos de um resmungo, um reclamo, uma jura de que queimaríamos no fogo dos infernos. Para terminar, juntávamos as sobras, desmontávamos as bombinhas, fazendo com a pólvora finas linhas como nos filmes de espionagem. O cheiro de pólvora se misturava ao do quentão naquelas noites frias de junho.
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Brincadeiras de Criança…
A praça era o mundo. Todo bairro tem uma, ou deveria ter. A minha tinha uma grande árvore no meio e ao seu redor uns bancos de concreto. Nos canteiros, grama e mais algumas arvorezinhas. O passeio era de terra. Nele jogávamos bolinha de gude. Sobre os bancos de concreto, jogávamos bafo. Na grama, a diversão era pescar formigas com hastes de capim. Com a ponta mais macia do capim inserida na boca do formigueiro, ficávamos a espera que um formigão o beliscasse e, de pronto, suspendíamos o inseto ao ar, dependurado no capim, para o deleite dos colegas. Os mais corajosos testavam sua resistência no poste de luz. Talvez pela falta de manutenção, o poste de luz dava choques. Choques fracos, suficientes para fazer formigar o braço. Entre uma brincadeira e outra, alguém era desafiado a segurar o poste o máximo de tempo possível. Descalço, era preciso estar descalço, ainda que naquela época todos andássemos descalços. A praça era o lazer, mas era campo de guerra também. Brincadeiras sempre acabam em desentendimento, talvez por isso quando adultos, tendemos a brigar no trânsito ou na fila do banco. Se o homem é o lobo do homem, quando meninos, somos lobinhos nada obedientes e alertas. O escotismo sempre me pareceu coisa plástica, artificial. Na praça, quando no gude, no bafo ou no desafio do poste, alguém se desentendia, a porrada comia solta. Pedrada, chute no saco, voadora na cara, não havia espaço para amadores. Até a formiga pescada, que me perdoem os ecologistas, ia parar na boca de algum desafeto. Não bastava dar rasteira e derrubar, esfregava-se a cara do oponente na terra. As mães se faziam acreditar nas desculpas de os arranhões serem de brincadeiras. A ida para a casa no meio da tarde só podia significar uma coisa: buscar uma lata de óleo lizza. Lata de novecentos mililitros, de latão, cuja extremidade superior era removida com o abridor de latas e cujo corpo servia de luva. Encaixada no punho, a lata deixava a armadura do homen de ferro no chinelo. O soco de lata dava onde dava. Nas costas, no peito, na cara. Maloqueiros, dizia a velha que observava os pequenos gladiadores pela janela da cozinha. Quando não estávamos brigando de socos de lata, a lata servia de totem para o jogo de bétis. Dois cabos de vassoura ou ripas de madeira, duas latas e uma bolinha. Era o suficiente para, depois de duas ou três rodadas, a maçaroca infantil virar vassourada, latada e saltos no vácuo com joelhada. Nos casos extremos, se formavam as tropinhas. A tropinha do Ticão, do Zinha, do Beronha, do Sonzi. Alistávamo-nos numa e partíamos para o cacete. Fora da praça, o universo! Novamente, os ecologistas que me perdoem, mas saíamos tacando fogo no mato. O cabo de vassoura do jogo de bétis, quando não era porrete nas costas da tropinha inimiga, era suporte para o frasco de xampu em chamas, pingando breu por onde quer que passássemos. É que naquele tempo, mesmo que já existisse essa tal ecologia, ela não nos chegava. Assistíamos ao Bozo louco no pó. Assistíamos o couro comer nas brigas entre Tom & Jerry, entre o Coiote e o Papa-Léguas, entre o Pica-Pau e o Zeca Urubu. A noite, já cansados e com medo dos morcegos que rodopiavam por entre as árvores da pracinha, fazíamos as pazes. Íamos para nossas casas sujos, fedendo, arranhados, escoriados e com o embrião do berne que, duas semanas adiante, seria tirado das costas com um pedaço de toucinho. Enviados direto para o banho, não sem umas boas chineladas, as duas horas debaixo d’água, com novo perdão aos ecologistas, nem sempre eram por diversão, é que tirar o cascão do pé era coisa para funileiro! A praça era o mundo. Palco das coisas saudáveis que fazíamos naqueles tempos em que não havia Internet.
#crônicasdeumterráqueo
Karência…
Meu insucesso escolar na infância e adolescência sempre esteve ligado a uma certa dissonância entre a instituição escolar e eu. A escola não fazia muito sentido, mas essa é uma interpretação do eu adulto, professor, depois de passar por duas licenciaturas e um mestrado. Lá, na longínqua década de 1980, eu apenas flanava por uma existência incompreendida. Não fui daqueles que aos quinze anos leu Sartre. Aos quinze anos eu sequer lia, nem mesmo o que a escola obrigava. Repetente em dois anos anteriores, na oitava série eu era o cavalão que, não fosse um pangaré, estaria completando o ensino médio. Eu era ruim em tudo, mas em matemática eu me superava. Naquela época eu não conhecia Descartes, ainda que o plano cartesiano lá estivesse nas malditas equações. Mal sabia eu que a razão poderia ser assolada, nublada, engrupida, tergiversada pelas artimanhas de um gênio do mal. Demônios que rondam nossas ideias, confundindo-nos e nos afastando da clareza do intelecto. Pois bem, na oitava série esse demônio tinha um nome: Karen. Um demônio de saias, Karen era um anjo esculpido em carne, ossos e cabelos new wave repicados em ondulatórias que faziam as parábolas das equações de segundo grau tão desinteressantes quanto as minhas aulas de Lógica. Quem em sã consciência iria dar trela para Dona Zulmira e o valor de delta quando Karen, conhecedora dos seus encantos sobre garotos introvertidos como eu, me dedicava zero vírgula zero vinte e cinco milésimos de segundo do seu olhar quarenta e três? Era pura perdição. Nas aulas de Língua Portuguesa eu até tentava prestar atenção, talvez na esperança de que o léxico pudesse irrigar a estiagem verbal provocada pela simples proximidade geográfica daquela angelical e demoníaca criatura. Em tempos em que o mundo das ideias de Platão nada significava no meu cérebro de pangaré, Karen era a pura manifestação platônica, meditações metafísicas dignas de um ser em constantes dúvidas clashinianas: should I stay or should I go. Elvis, The Pelvis, filósofo requebrante dos palcos do Rock and Roll já dizia, Its Now or Never? Pois bem, never. Jamais troquei com Karen mais que ois e tchaus pelos corredores tétricos do colégio. Finalmente concluída a oitava série, meus caminhos seguiram por outras searas. Fui para o ensino profissionalizante, a noite, onde a alma pueril de um garoto introvertido como eu teve de sair da caverna. O mundo se descortinou, ainda que a escola continuasse sem sentido. Muitos anos mais tarde, num dia qualquer dos anos 2000, num corredor de supermercado, encontrei Karen. Não a reconheci. Ela sim, me chamou com um psiu, você não é o Edgar? Do Santa? Assenti com a cabeça ainda vasculhando na memória quem seria aquela mulher. Trocamos algumas palavras sobre os bons tempos de colégio e cada qual seguiu seu caminho, ela para o corredor dos laticínios, eu para a seção de bebidas. No caixa, enquanto a atendente, minha ex-aluna, reclamava da semana de provas, a ficha caiu. Meu deus, a Karen! David Hume já havia me alertado, nossas memórias são ficções, histórias que contamos para nós mesmos.
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