Colônia de Férias

Colônia de férias. Peruíbe. Passávamos o Natal e o Ano Novo na colônia de férias. Mamãe passava o ano inteiro na cola da moça do sindicato para conseguir dez dias de paz e sossego à beira mar. Pensão completa. Café-da-manhã, almoço e janta. E no natal, ceia. No ano novo também. E uma lata de um quilo de goiabada, mas essa era meu pai quem levava. A colônia de férias era um território de ninguém para a molecada. Gente de todos os lugares. Gente de São Paulo, gente de Ribeirão Preto, gente de Pindamonhangaba, gente de Bauru e gente de Sorocaba. Eu, o leite-quente. Poucas horas depois de desfazer as malas, após longas horas de estrada espremidos num Fusca, nos primeiros diálogos com outras gentes, lá na sala de jogos, o apelido leite-quente vinha com vigor. Fala leite quente. LeitE quentE. O ê acentuado, com circunflexo, característico da herança tropeira, era diversão e chacota nos ouvidos paulistas acostumados com o leiti quenti. Chacota que era revidada com traquinagens que deixariam o Pedro Malasarte no chinelo. Pela manhã, café-da-manhã até o pandú fazer bico. Durante o dia, praia. Pausa para o almoço, um breve cochilo e, praia de novo. À tardinha, como dizemos em Sorocaba, banho e janta. À noite, sala de jogos. Pingue-pongue. Bilhar. Rouba-montes. Traquinagens. Na surdina, enterramos a botina de um moleque da capital no playground. Um pé só, o direito. Deu de chover a noite toda. Na manhã seguinte, descobertos, desenterramos a botina. Encharcada. Nem sempre as artes dos Malasartes ficavam no anonimato. Éramos crianças e a internet ainda não havia sido inventada. Na antevéspera do natal, enquanto eu tomava uma minha fumegante xícara de café com leite e deliciosas fatias de filão com manteiga e mel, Pompeu desembarcava do Del Rey zero quilometro. Do porta malas espaçoso, dezenas de malas e pacotes de presentes. Um deles, por razões óbvias sem papel de embrulho, uma bicicleta importada. Com amortecedores. Veja bem, hoje em dia isso é carne de vaca, mas nos idos de 1985, bicicleta com amortecedor era pura ostentação. Pompeu trajava meias de seda, mocassim, bermudas de sarja, camiseta polo e um pulôver sobre os ombros. Praticamente um cosplay anacrônico do João Dória. Tudo naquela visão destoava das minhas havaianas gastas, sunga do Incrível Hulk e camiseta regata. Pompeu sumiu pelas escadas, seguido pelos pais e pela irmã. Desnecessário dizer que os pais de Pompeu pareciam saídos de um filme hollywoodiano dos anos 40. A irmã era exatamente igual ao Pompeu, inclusive no buço salpicado de pelos, mas de vestido. Não os tivesse visto juntos, diria que Pompeu e a irmã eram a mesma criança inovando no cross-dressing. O dia seguiu na normalidade. Praia, almoço, soneca, praia, banho e janta. Pompeu, de calção de banho e bóia inflável colorida, apareceu após o almoço, no turno praiano da tarde. A gente levava uma câmara de pneu caminhão Fenemê como boia. Pompeu, para refrescar-se, bebia refrigerantes em lata. A gente levava um garrafão térmico de cinco litros com Q-Suco de uva. Meu dias em Peruíbe eram um episódio do Chaves em Acapulco, antes mesmo de Chaves fazer sucesso. A mãe de Pompeu, dona Pompéia no imaginário da molecada, usava um maiô metálico, óculos de sol maiores que os para-brisas do Fenemê de onde tinha vindo a nossa bóia e um chapéu de dondoca. Fumava cigarros chiques com aquelas piteiras que a gente via em algum episódio do Pica-Pau, quando se vestia de mulher. O pai, Pompeuzão, era o próprio Clark Gable de ceroulas de corte italiano e lenço de seda amarrado no pescoço. Na véspera de natal, durante o café-da-manhã, Pompeu estreou o seu presente, a bicicleta importada com amortecedores. Subiu nela, deu duas pedaladas e passou por todos com seus ar aristocrata, pedalou com mais intensidade em direção a uma elevação do gramado e… bum! A roda dianteira foi para um lado e Pompeu, impulsionado pelos amortecedores, voou para o outro. Caiu de boca nos ladrilhos de concreto. Estatelou-se. A mãe teve uma síncope. O pai gesticulava freneticamente, ora olhando para a bicicleta retorcida, ora olhando para Pompeu semi-banguela. A irmã ria. Ria copiosamente. As pessoas ao redor da cena, segurando seus apetrechos praianos, desviavam do pequeno e todo esfolado Pompeu. Alguém pisou em algo e exclamou. Era um pedaço de dente. Dente do Pompeu. Naquele mesmo dia, à tardinha, o Del Rey zero quilometro deixou o estacionamento da colônia. Perderam a ceia. A noite, na sala de jogos, empanturrados de chester panetone, alguém perguntou, e o Pompeu? Silêncio. Todos sabiam que Pompeu fora vítima de uma sabotagem. Alguém havia afrouxado as porcas que prendiam a roda dianteira da bicicleta importada com amortecedores. Alguém. Quem? Do canto da sala, calçando uma botina estrupiada no pé direito, alguém disse: leite-quente.

Neno…

Neno era o nome do moleque chato que vivia na casa ao lado. Nome não, apelido. De fato, eu nunca soube o seu nome. Neno. Pirralho de cabelos desalinhados, roupas mal cuidadas e dentes manchados de cárie. Neno vivia correndo pelas calçadas com alguma bugiganga que coletava nos ferros-velhos do bairro. Nessa época éramos todos, de algum modo, moleques chatos. Estávamos nas férias escolares e nos juntávamos na praça para brincar e brigar. É que a brincadeira, nessa fase, sempre vira briga, ainda mais quando o Neno estava por perto. Havia quem quisesse socar a cara dele apenas e tão somente pelos eu olhar insolente. Certa vez, a mãe do Neno nos chamou para jantar na casa deles. De fato, eu nunca soube se aquela mulher de traços duros era realmente a mãe do Neno. Eles moravam nos fundos da quitanda do Paulo. Paulo trazia muambas do Paraguai e as vendia em meio às frutas e hortaliças. Paulo era o nipônico mais brasileiro que eu já conheci, mas isso fica para uma outra crônica. A casa do Neno era uma casa pobre. Móveis rebentados, paredes descascadas. Sentada no canto do sofá, Emília. Irmã do Neno. De fato, se ela era ou não irmã do Neno, eu nunca soube. Emília, apesar de muito jovem, parecia já ter vivido muitas vidas. Tinha sardas que se espalhavam sobre o nariz e as maçãs do rosto. Tinha os dente igualmente manchados de cáries, como os do Neno. Tinha, também, marcas roxas nos braços. Ali, sentada no canto do sofá, vestida com uma camiseta de campanha política vários números acima do seu e com uma almofada sobre as coxas, Emília corou ao me ver entrar na modesta casa. Sua mãe lhe disse, Emília, levanta e cumprimenta o amigo do Neno. Neno riu, nem de longe éramos amigos. Emília delicadamente meneou a cabeça enquanto sussurrava para a mãe, não posso, estou só de calcinha. Eu apenas acenei a ela com a mão, ela apenas me sorriu um meio sorriso. A mãe entregou à Emília um prato cheio de comida. Vocês dois pegam a comida no fogão, disse-nos enquanto sumia no corredor que levava a um outro comodo. Neno foi primeiro, encheu o prato, sentou em frente ao antigo televisor, numa banqueta de madeira, e desligou-se do mundo. Coloquei duas colheres de arroz e uma outra de algo que até hoje não sei dizer o que era. De fato, era carne, mas só deus saberia de quê. Sentei-me no sofá, na ponta oposta à Emília. Na TV, um desenho animado qualquer. Neno devorava sua janta sem tirar os olhos do aparelho. Eu, de cabeça baixa, remexia a comida no prato sem de fato comer. Emília comia com calma, deixando na borda do prato alguns pequenos pedaços de cebola. A mãe voltou do comodo, havia mudado de roupas. Trabalhava no terceiro turno de alguma fábrica fábrica. Saiu dizendo que havia sagu na geladeira. Neno não tirava os olhos do desenho animado. Emília deixou seu prato sobre o braço do sofá e, num salto quase ornamental, passou do sofá ao corredor que dava para o outro comodo. De dentro do comodo, Emília gritou, Neno, dá sagu pro seu amigo. Neno olhou para mim, olhou para a geladeira, tornou a olhar para mim e retornou ao seu hipnótico desenho animado. Levantei-me e fui ver a cara do sagu. Parecia bom. Voltava para a sala, perguntar ao Neno onde tinha um pote para por o sagu, mas parei diante do corredor. Emília, havia trocado de roupas e penteava os cabelos diante de um diminuto espelho. Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando-a. Ela é puta, disse Neno. Hã? O olhar de Emília encontrou o meu. O que você disse, pirralho? PUTA, gritou Neno. PUTA. Outro salto, quase ornamental, trouxe Emília para a sala. Neno olhou para ele, insolente. PU-TA. Ela pegou Neno pelos cabelos e socou-lhe a cara. O prato voou ao chão. PUTA, entre lágrimas, SUA PUTA. O segundo soco fez Neno sangrar. PUTA! Neno saiu correndo pelo corredor da quitanda e sumiu. Emília juntou os cacos do prato quebrado, ajeitou a banqueta e as almofadas do sofá. Dois filetes de lágrimas haviam borrado sua maquiagem. Ela abriu a geladeira, pegou uma colherada de sagu e me deu. Não tem pote, disse-me antes de sair pelo corredor da quitanda. Lá fora, na rua, um carro grande a esperava. Eu tinha 12 anos. Neno, 11. Emília, não mais que 16. Nunca mais os vi.

#crônicasdeumterráqueo