Tocaia…

Sentamos para beber uma cerveja. Na mesa ao lado, quatro cavalheiros trocavam confidências. Talvez pelo alto teor alcóolico em suas correntes sanguíneas, o volume de suas vozes também estava elevado. Um deles, na casa dos seus cinquenta e tantos, se gabava do fato de sempre camuflar seus deslizes com a amante. A esposa, certa vez, encontrara um vidro de esmalte que não lhe pertencia no carro do marido. Com voz de barão, colocou-a no seu devido lugar. Ora, onde já se viu, aquele esmalte poderia ter vindo das mais inusitadas situações e, obviamente, nenhuma delas relacionada a existência de uma outra mulher. Rapidinhas nas pousadas urbanas, aquelas cujo movimento no horário do almoço concorre com os drive-thru dos fast-foods. Dia desses, por uma casualidade, estacionei em frente a um desses estabelecimentos justamente na hora do almoço. Foram menos de quinze minutos, o suficiente para ver, além do entra e sai de carros, rostos em esquiva toda vez que davam com a minha cara. Fazia o calor típico de um início de tarde quente em Sorocaba, eu mantinha todos os vidros do meu carro abaixados. Posicionado de cara com o portão da saída de um desses sei lá o nome, motoristas e acompanhantes, incautos, ainda risonhos, fechavam seus rostos ao se depararem com meus ray-ban escuros, barba mal feita e sobrancelhas de lobisomem. Meu deus, será um detetive particular, certamente foi o que se passou pela cabeça da jovem senhorita do sedan vermelho. Não, imagina, é algum vagabundo, detetives são discretos e eu estava mesmo era a me divertir. No utilitário de luxo, o motorista, ao dar de cara com o este Ed Mort de araque, titubeou. Embicou para a direita, deu seta para a esquerda e saiu cantando pneus enquanto sua passageira enfiava o rosto na bolsa. Talvez tenha sido numa dessas situações que o vidro de esmaltes do início de nossa conversa tenha vindo a cair sob o banco do cinquentão. Vá saber! Pois bem, voltando a minha tocaia incidental, houve o casal de moto, feliz e faceiro, o motorista até me deu um aceno. É que nem sempre as pessoas estão a cometer adultérios. Nada pude ver da pick-up insulfilmada que entrou logo depois da saída de um Uno de firma, daqueles com escada e tudo, certamente era o rapaz que conserta os ares condicionados, visto que ia solitário e na sua porta pude ler algo que terminava com “tec”. Passados os quase quinze minutos, dei-me conta que estava esperando no lugar errado. A mensagem no celular, aonde você está?, me trouxe a realidade. Sem saber, três minutos após a minha saída e a pedido do dono do estabelecimento, uma viatura da polícia chegou ao local para investigar o investigador casual, inadvertido, que já havia, para seu bem, partido.

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urGente…

O tempo urge. Estaciono meu carro e sigo para o prédio no qual dou aula. São sete e meia. Um aluno me aborda logo na saída do estacionamento. E ai, professor? Tudo bem? Tudo bem. Ele tem uma dúvida e anseia por saná-la. Eu tenho que bater o ponto. A angústia me toma logo cedo, sei que se atrasar no ponto, serei descontado. Sei que se parar para atender o aluno, me atrasarei. Devo deixar o aluno em suas dúvidas e cumprir com o protocolo do relógio de ponto? Devo atendê-lo? Afinal, meu ofício de mestre não é mais que um bater cartões? Ó dúvida. O tempo urge. Me acompanhe até o prédio, digo a ele. Vamos, peripatéticos, trocando ideias pelos corredores. De frente a sala dos professores, peço um instante, preciso entrar e registrar minha presença. Agora, suba comigo até o terceiro andar. Ele me acompanha aos tropeços, o caminho me é familiar, me é cotidiano. Ele explana suas dúvidas, eu as diluo a cada lance de escada vencido. Já em frente a sala de aula, ele me agradece. Aulas de corredores, uma de minhas especialidades. Noutro canto da cidade, Rogério segue em zigue-zagues pela rodovia. O tempo urge. Cada quilômetro tem ares de fórmula um. Os segundos dão lugar aos décimos de segundos. Vai, vai, vai! Raios, a toupeira no carro à frente reduziu diante da amarelidão do semáforo. Amarelou, Rogério teria avançado, reduzido a marcha e socado o pé no acelerador. O tempo urge. Depois de cumprido o ritual dos registros, sento-me à mesa para aguardar os alunos. É que o tempo urge de formas distintas. Para uma sala de aula, sete e quarenta pode bem ser oito e cinco. Bem, ao menos para os alunos. No trânsito, Rogério, esbaforido, maldiz o tráfego intenso. Teriam todos saído justamente ao mesmo tempo que ele? É que Rogério, assim como eu, tem um ponto a bater. O relógio, mais que o relojoeiro, dita as regras. Os ponteiros apontam-nos, julgam-nos. No tique-taque, no zigue-zague, Rogério, esbaforido, perde a prova. É que às vezes, sete e quarenta é sete e quarenta mesmo, sem choro, sem desculpas, sem piedade. Acordasse mais cedo, saísse mais cedo. O inferno, já dizia Sartre, são sempre os outros. Não levem a mal o meu colega professor, o que aplica a prova. Ele apenas reproduz o tique-taque, vive no zigue-zague, apontado, aponta. Regrado pelo ponto, passa a regrar a si e aos demais. O tempo urge. Cá na minha sala, o movimento de nádegas dormentes denunciam que estamos perto das nove e vinte, hora de partir. É que o relógio que nos cobra a entrada, nos empurra à saída. A fila anda. O tempo urge. No corredor, uma aluna me chama. Professor, perdi sua aula de ontem, posso tirar uma dúvida? Acompanhe-me, acompanhe-me, por favor. Peripatéticos, vamos eu e ela, trocando ideias. O tempo urge.

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Líquida ação…

Absortos, hoje em dia andam todos absortos com o brilho do cristal líquido. Tempos líquidos, dizem. Tempos em que as relações se liquefazem nos liquidificadores e nas liquidações. Absortos, voltados para si mesmos, alheios ao mundo vasto mundo. Dia desses, num desses momentos de absorção, caminhava eu por entre as fileiras de produtos do mercado. Olhos colados na tela luminosa do smartphone. Para os olhares distraídos, alheios ao meu microcosmo, mais um zumbi digital, desses que dá mais importância aos Apps que aos irmãos primatas superiores, os ditos antropóides. Enquanto isso, uma senhorinha que esconde com produtos químicos sofisticados a sua brancura capilar tece maus juízos sobre este jovem e desleixado zumbi digital que, na tela hipnótica, busca informações sobre os ataques nas Ramblas catalãs. É que neste meu mundo vasto mundo, calhou-me ter uma mãe importada. E sendo mamãe fino produto europeu, tenho lá nas terras do velho mundo alguns familiares. Mal sabe o senhor de bigode imponente, gravata de seda e ar de aristocrata, que junto da senhorinha trama comentários apocalípticos sobre a minha juventude perdida naquela tela satânica, que eu estou, naquele mesmo momento, lendo as postagens de parentes que dizem estar bem, apesar de todo o terror que a cidade de Barcelona vive naquele instante. Aliviado ao saber que entre os meus parentes tudo está bem, sigo na minha tarefa cotidiana de abastecer a casa com os itens em falta. Ao me lado, no corredor das guloseimas, uma garota de seus quinze ou dezesseis anos anda agilmente por entre gentes e carrinhos de compras, ainda que com os olhos absortos, colados na tela do seu smartphone. Ela digita freneticamente enquanto faz caras e bocas. Eu a observo anônimo. Com quem será que ela conversa? Terá parentes na mesma Catalunha que eu? Pelas caras e bocas, não. Ela sorri enquanto digita, vez ou outra morde os lábios como quem sente o calor adolescente das paqueras. Talvez seja um crush, talvez a BFF, tanto faz, lá no seu mundo vasto mundo, a vida pulula. Eu, cá no meu, agora estou de olho nas promoções do App do próprio mercado. O queijo gouda está com quarenta porcento de desconto pelo aplicativo. Um correr de dedos para ativar a promoção, uns poucos cálculos mentais e um belo e vigoroso naco de gouda vem para o carrinho. Ao longe, na fila preferencial, a senhorinha e o senhor bigodudo agora têm olhos para a menina que antes me chamara à atenção. Perdidos, todos perdidos, penso eu na fila dos caixas rápidos. Será o destino de toda uma geração a incompreensão de tantos e tantos mundos vastos mundos? Absorto em tais confabulações, alguém me toca o ombro. Uma outra senhorinha, também de cabelos brancos escondidos sob as químicas do corredor de cosméticos, de olho nos conteúdos do meu carrinho, me pergunta: esse é o queijo do aplicativo, moço? É sim. E é bom? É sim, se a senhora gostar de queijos. Sacando o seu smartphone da bolsa, com uma piscadinha de olhos, ligeira, líquida, a senhorinha pôs-se em marcha ao corredor dos laticínios. De olhos colados nos pixels cintilantes do smartphone, desliza os dedos sobre ela para garantir um belo naco de queijo gouda com quarenta porcento de desconto. Mais tarde, no grupo do Whatsapp da família, Vó Clementina posta a foto do queijo gouda com os dizeres: tá barato! tá gostoso.

Mundos, vastos mundos.

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Fita K7…

Sou daquelas pessoas que ainda ouvem rádio. Pelas manhãs, enquanto preparo meu café, ouço o noticiário num aparelhinho sem vergonha, daqueles comprados em camelôs, bem chineses, bem baratinhos. Às vezes ouço o noticiário no rádio do carro, mas o habitual dentro do carro é eu ouvir música. Basicamente alterno entre duas estações, aquela do noticiário e uma outra que tem sua programação dedicada exclusivamente ao Rock & Roll e seus sub-gêneros. O Rock & Roll sempre foi a minha praia, ainda que eu goste muito de outros gêneros. Às vezes me deleito com um Puccini, um Beethoveen, um Mozart, para ficar nos mais popstars. Às vezes me deixo embalar por alguma moda de viola, daquelas bem sofridas, que cantam as amarguras do caipira, mas me deixo levar também por aquelas que cantam as alegrias. Só não sou muito chegado aos sertanejos que, universitários, se enveredam pelas cenas urbanas, pois se é para ser urbano, prefiro a periferia do Punk, o Sex and Drugs das pedras rolantes. O mundo do Rock é vasto. Meu espectro de preferências gravita mais no prazer que as melodias me proporcionam que nos vanguardismos ou ativismos. É que sempre tem aquele povo para o qual música deve ter mensagem, deve chacoalhar bandeira, deve causar rupturas artístico-conceituais-performáticas, seja lá isso o que for! Pois para mim, música é e pode ser apenas música. No rádio toca um roquinho do Nickelback, banda que faz, ao meu ouvir, um sonzinho honesto, sem grandes pretenções, sem grandes bandeiras, é gostoso de ouvir. Tem gente que não gosta, xinga, fala mal e ainda dá espinafrada em quem ouve. É aquela velha história: gosto é gosto, cada um tem o seu. Nos tempos dos bailinhos de garagem, a molecada nem ligava se a música tinha uma poética complexa e declamava nuances nerudianas do amor. Bastava ter um ritmo lento, ser gostosinha de ouvir, pois nos bailinhos o objetivo mesmo era ficar de rosto colado com a crush, sentir-se o maioral ao dançar com a menina mais bonita da turma. Vanguardismos e salvem as baleias não tinham vez, apenas as baladinhas mela-cueca do Brian Adams. E por falar nisso, certa vez, lá pelos fins dos anos 1990, num tradicional motel da cidade, numa suíte que vinha equipada com um aparelho de som, um Micro System Aiwa, encontrei nele, esquecida, uma fita cassete do Jethro Tull – sim, uma fita cassete. Quem, pensei eu à época, transa ouvindo Jethro Tull? Vai saber quais fantasias sexuais passaram pela cabeça de um casal ao som de Aqualung! Bem, desnecessário dizer que a ocasião faz o ladrão, assim, naquela noite… Aaaquaaaluuuuuuuung. Oi? A fita? Perdeu-se em alguma gaveta qualquer!

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Digitais…

Minhas digitais estão no sistema. Nas pontas dos dedos, o acesso às contas bancárias, aos ambientes de trabalho. Convertidas em sequências de zeros e uns, as linhas onduladas dos meus dedos agora são meros dígitos. Antes, serviam para digitar. Antes ainda, para discar. Hoje deslizam por telas insensíveis. A catraca da academia já as tinha antes dos bancos, antes do trabalho. O polegar que dava acesso à ficha de treinamento, aquela que hoje amarela nas bases de dados – ou dedos? –, pois eu sou daqueles dedos que nunca passam pelas catracas das academias mais que um mês. Replicada em novas bases, os dedos são os mesmos, a digital não muda, mudamos nós. Dez digitais, dezenas de códigos que apontam para o futuro. O dedo indicador hoje fala mais que a face. A esquete do comediante que morreu há poucos dias não tem mais graça. O cara-crachá deu lugar aos dígitos. Noutras terras, dizem que a cara já pode ser lida pelos olhos eletrônicos do grande irmão. Caras, placas de automóveis, saliva, no futuro, tudo dígitos que o grande arquiteto monitora nas veias da Matrix. Vão-se os dedos, ficam as digitais. No futuro, historiadores vasculharão as bases de dedos, mineiros digitais escavando montanhas e montanhas de hexabytes em busca de polegares, indicadores, mindinhos. Arqueólogos em busca de um dedo de prosa com fantasmas binários. Hoje deixei minhas digitais em mais um sistema. Um toque de Mídas, monitorado a cada segundo, a cada passo, transformando o tempo em dinheiro, afinal, não é disso que estamos falando? Dígitos. HAL 9000, meu caro, a ficção científica tenta, mas nunca nos alcançará. Por mais que viajemos ao futuro em sofisticadas traquitanas-devaneios, as pistas para ele estão aqui no passado. Estão nos dedos machucados, na lida dos cinzéis que modelaram os blocos de pedra das pirâmides. Quantas digitais impressas com sangue não se confundiram com hieróglifos? Digitais, polegares opositores, o movimento de pinça que nos tirou das copas das árvores tornou-se obsoleto, dos dedos basta-nos a ponta. Um toque, apenas um toque. Toque aqui com a ponta do dedo. Beep. A sequência binária viaja pela base de dedos. Beep. Beep. ERRO. Na oscilação elétrica, na interferência das ondas do wi-fi, o um virou zero, o zero virou um. BEEP. Você deixou de existir. Vão-se os dedos, ficam os errantes. Tente novamente. BEEP.

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