Minhas digitais estão no sistema. Nas pontas dos dedos, o acesso às contas bancárias, aos ambientes de trabalho. Convertidas em sequências de zeros e uns, as linhas onduladas dos meus dedos agora são meros dígitos. Antes, serviam para digitar. Antes ainda, para discar. Hoje deslizam por telas insensíveis. A catraca da academia já as tinha antes dos bancos, antes do trabalho. O polegar que dava acesso à ficha de treinamento, aquela que hoje amarela nas bases de dados – ou dedos? –, pois eu sou daqueles dedos que nunca passam pelas catracas das academias mais que um mês. Replicada em novas bases, os dedos são os mesmos, a digital não muda, mudamos nós. Dez digitais, dezenas de códigos que apontam para o futuro. O dedo indicador hoje fala mais que a face. A esquete do comediante que morreu há poucos dias não tem mais graça. O cara-crachá deu lugar aos dígitos. Noutras terras, dizem que a cara já pode ser lida pelos olhos eletrônicos do grande irmão. Caras, placas de automóveis, saliva, no futuro, tudo dígitos que o grande arquiteto monitora nas veias da Matrix. Vão-se os dedos, ficam as digitais. No futuro, historiadores vasculharão as bases de dedos, mineiros digitais escavando montanhas e montanhas de hexabytes em busca de polegares, indicadores, mindinhos. Arqueólogos em busca de um dedo de prosa com fantasmas binários. Hoje deixei minhas digitais em mais um sistema. Um toque de Mídas, monitorado a cada segundo, a cada passo, transformando o tempo em dinheiro, afinal, não é disso que estamos falando? Dígitos. HAL 9000, meu caro, a ficção científica tenta, mas nunca nos alcançará. Por mais que viajemos ao futuro em sofisticadas traquitanas-devaneios, as pistas para ele estão aqui no passado. Estão nos dedos machucados, na lida dos cinzéis que modelaram os blocos de pedra das pirâmides. Quantas digitais impressas com sangue não se confundiram com hieróglifos? Digitais, polegares opositores, o movimento de pinça que nos tirou das copas das árvores tornou-se obsoleto, dos dedos basta-nos a ponta. Um toque, apenas um toque. Toque aqui com a ponta do dedo. Beep. A sequência binária viaja pela base de dedos. Beep. Beep. ERRO. Na oscilação elétrica, na interferência das ondas do wi-fi, o um virou zero, o zero virou um. BEEP. Você deixou de existir. Vão-se os dedos, ficam os errantes. Tente novamente. BEEP.
#crônicasdeumterráqueo