Avaliação…

Dorival sabia o que o aguardava quando saiu da sala 1C. Desde a graduação, sabia que estava se metendo em terreno pedregoso. Filosofia? O espanto dos demais nada tinha que ver com a admiração frente ao conhecimento. Filosofia? Mas logo Filosofia, filho? O espanto de Dona Marília era medo memso. Medo de que seu filho fosse mais um desses corpos fustigados que se arrastam pelos corredores das escolas públicas. No tempo de Dona Marília não. Lá no seu tempo havia respeito. Sobrevivente dos anos dourados, quando o exercício do magistério e o exercício da medicina gozavam das mesmas glórias, ela optou por ser médica. Mas o tempo flui. A jovem Marília tornou-se a Dona Marília, mãe de Dorival e a escola degradou-se a ponto de o seu espanto ecoar durante dias pelos cômodos do antigo casarão da antiga vila operária. FILOSOFIA, Dorival? Ainda se fosse pelo diletantismo, pela aura aristocrática de flanar sobre os saberes filosóficos sem maiores pretensões talvez, já para dar aulas… Jesus Cristo, Dotival! Aulas? Se o pai fosse vivo, morreria duas vezes de desgosto. À margem dos comentários nas festas de fim de ano, Dorival graduou-se. Logo no ano seguinte, passou no concurso público e, para o desespero de Dona Marília, em março Dorival percorria os corredores da escola pública, um alvo exposto. Sua primeira aula foi um desastre. Dorival, inocente como todo professor recém formado em Filosofia, crente na epígrafe aristotélica de que “todo homem, por natureza, deseja conhecer”, naqueles primeiros quinze minutos de aula, percebeu que Aristóteles deveria, antes, ter lido Hobbes. Animais! São uns animais, dizia a professora de Matemática. Bestas! São umas bestas, dizia o professor de Química. O de História arrematava, são um bando de lazarentos. La-za-ren-tos! A sala dos professores exalava o ódio. Dorival não sabia como lidar com a ambiguidade que experimentava no translado da sala de aula para a sala dos professores. Seriam os alunos, por natureza, umas bestas? Ou, por sistemática classificação dos seus professores, teriam os alunos se convertido em bestas? Dorival passou a frequentar o recreio. Passou a circular entre os meninos e meninas que o repudiavam como um leproso. A escola havia erguido barreiras altas o suficiente para que professores e alunos fossem não mais que inimigos, cada qual no seu quadrado. Filosofia, Dorival? Ainda se fosse Matemática! Filosofia? Quem quer saber de Filosofia, hoje são todos umas bestas, uns animais. Até Dona Marília, que nunca fora professora, sabia que lá dentro da escola, o mundo estava perdido. Ela, que sequer dava bom dia ao zelador do hospital. Ela, que sequer dava bom dia às pacientes. Ela, que todos os domingos rezava pelo bem dos seus. Até ela, que nunca havia posto um pé sequer nos corredores da escolas públicas, sabia que o problema não tinha solução. Dorival sabia das dores de sua mãe ao vê-lo professor. Dorival, ao contrário dela, não sabia nada da escola, nada dos alunos, nada sobre bestas e animais. Um dia Dorival, sem esperanças, escreveu na lousa: avaliação. Os alunos, inquietos, começaram a perguntar-se, cadê a prova? Dorival, sentado sobre a mesa, balançava as pernas no ar e rodopiava o toco de giz com os dedos. Renatinha foi a primeira a fazer galhofa. Cadê as perguntas? Quanto vale a prova? Ele nem deu matéria. Depois de quinze minutos de alvoroço, Dorival voltou a escrever na lousa, logo abaixo da palavra avaliação, grafou: reprovado. REPROVADO? Tá maluco, seu bosta? Nem deu prova. Nem deu matéria. Nem nada… Dorival levantou-se e saiu da sala. Dias depois, quando a professora eventual apareceu, os alunos souberam que era Dorival quem havia sido reprovado. Não aguentou o tranco, disse Renatinha com um sorriso satânico. Bunda-mole, disse o professor de História. Dona Marília até hoje chora o sumiço do filho Dorival. Seu Manel, o senhorzinho que vendia salgados na saída da escola, depois de uma visita aos parentes, lá pelas bandas de Mucupira, jura de pés juntos que viu Dorival trabalhando no guichê da rodoviária: no crahá dizia Sócrates, mas tenho certeza que era o Dorival.

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Quem vai casar?

Sentou-se em frente a mesa do professor sem muita convicção. Professor, preciso te pedir algo. Pois pida, disse-lhe em um quase sorriso. Era seu costume falar certas palavras em português errado. Não por ignorância, mas por estratégia. É que ao proferir pobrema diante de um problema, a aura catedrática, muitas vezes inibidora de um diálogo mais fluído, evaporava-se em nuvens de descontração. Dizia ostra no lugar de outra, bão no lugar de bom. A faca era de dois legumes e o combinado, cãobinado. Tomate-ca-mente era automaticamente e, de trocadilho em trocadilho, de erro em erro, a comunicação se dava sem prejuízo. Fazia por graça, ainda que um ouvido ou outro, inadvertido, achasse um despautério professor falar assim. Então, professor, seu trabalho, aquele em grupo, que o senhor sorteou semana passada… As reticências, o olhar cabisbaixo e os vinte anos de sala de aula profetizavam o pedido de dispensa, restava saber o motivo, razão ou circunstância. Tô ligado, disse o professor para abreviar o suplício. Da lista de possibilidades, é sabido que a morte não se anuncia com semanas de antecedência, logo descartou o velório de alguma tia lá no interior do Paraná. Tamborilando os dedos sobre a mesa ao ritmo da marcha imperial, disparou. Quem vai casar? As sobrancelhas arqueadas e a luminosidade no rosto vieram seguidas de um sonoro eu. Eu, professor. Na sexta no civil, no mesmo cartório no qual sua futura esposa trabalha de recepcionista, logo pela manhã Sábado no religioso, para agradar a família dela, lá no interior do Paraná, na igreja matriz, bem a tardinha. Os trâmites para o casório já vinham de um ano antes. O aperto financeiro e a dificuldade de reunir toda a parentada fez com que a data coincidisse com a apresentação do trabalho da faculdade. É coisa do zodíaco, diziam-lhe os amigos solteiros. Antes evitar uma DP que afivelar-se nas coleiras do matrimônio. Sabiam que perderiam o goleiro das noites de terça para a futura esposa e o Master Chef. Já os familiares, agarrados à última esperança de finalmente ver-lhe casado, mandariam às favas o professor, tudo dentro das normas da ABNT, que fique claro. Segundo minha avó, disse-lhe, o homem nasce, cresce, fica bobo e casa. Pois é, professor… As reticências, novamente elas. O aluno esperava uma resposta. Era uma faca de dois legumes, o professor poderia dizer-lhe ema ema, cada um com seus pobrema. O professor sabia disso. A pausa dramática se estendeu por mais alguns segundos, o suficiente para uma gota de suor formar-se no canto esquerdo daquela têmpora universitária. Sem pobremas, meu caro. Trocamos com o grupo anterior e, tomatecamente, seu grupo fica para a ostra semana. Cãobinado? Oxi, professor. O alívio muscular podia ver-se em fluidas ondas sob a pele do rapaz. Desejou-lhe um bão casamento enquanto observava-o flanar dois centímetros acima do solo. De volta aos teclados do seu computador, à crônica que digitava quando fora interrompido pelo noivo atormentado, percebeu uma sombra diante de si. Antes que pudesse concluir a digitação desta linha, a sua frente, sem muita convicção, sentou-se outro aluno. Pida!

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urGente…

O tempo urge. Estaciono meu carro e sigo para o prédio no qual dou aula. São sete e meia. Um aluno me aborda logo na saída do estacionamento. E ai, professor? Tudo bem? Tudo bem. Ele tem uma dúvida e anseia por saná-la. Eu tenho que bater o ponto. A angústia me toma logo cedo, sei que se atrasar no ponto, serei descontado. Sei que se parar para atender o aluno, me atrasarei. Devo deixar o aluno em suas dúvidas e cumprir com o protocolo do relógio de ponto? Devo atendê-lo? Afinal, meu ofício de mestre não é mais que um bater cartões? Ó dúvida. O tempo urge. Me acompanhe até o prédio, digo a ele. Vamos, peripatéticos, trocando ideias pelos corredores. De frente a sala dos professores, peço um instante, preciso entrar e registrar minha presença. Agora, suba comigo até o terceiro andar. Ele me acompanha aos tropeços, o caminho me é familiar, me é cotidiano. Ele explana suas dúvidas, eu as diluo a cada lance de escada vencido. Já em frente a sala de aula, ele me agradece. Aulas de corredores, uma de minhas especialidades. Noutro canto da cidade, Rogério segue em zigue-zagues pela rodovia. O tempo urge. Cada quilômetro tem ares de fórmula um. Os segundos dão lugar aos décimos de segundos. Vai, vai, vai! Raios, a toupeira no carro à frente reduziu diante da amarelidão do semáforo. Amarelou, Rogério teria avançado, reduzido a marcha e socado o pé no acelerador. O tempo urge. Depois de cumprido o ritual dos registros, sento-me à mesa para aguardar os alunos. É que o tempo urge de formas distintas. Para uma sala de aula, sete e quarenta pode bem ser oito e cinco. Bem, ao menos para os alunos. No trânsito, Rogério, esbaforido, maldiz o tráfego intenso. Teriam todos saído justamente ao mesmo tempo que ele? É que Rogério, assim como eu, tem um ponto a bater. O relógio, mais que o relojoeiro, dita as regras. Os ponteiros apontam-nos, julgam-nos. No tique-taque, no zigue-zague, Rogério, esbaforido, perde a prova. É que às vezes, sete e quarenta é sete e quarenta mesmo, sem choro, sem desculpas, sem piedade. Acordasse mais cedo, saísse mais cedo. O inferno, já dizia Sartre, são sempre os outros. Não levem a mal o meu colega professor, o que aplica a prova. Ele apenas reproduz o tique-taque, vive no zigue-zague, apontado, aponta. Regrado pelo ponto, passa a regrar a si e aos demais. O tempo urge. Cá na minha sala, o movimento de nádegas dormentes denunciam que estamos perto das nove e vinte, hora de partir. É que o relógio que nos cobra a entrada, nos empurra à saída. A fila anda. O tempo urge. No corredor, uma aluna me chama. Professor, perdi sua aula de ontem, posso tirar uma dúvida? Acompanhe-me, acompanhe-me, por favor. Peripatéticos, vamos eu e ela, trocando ideias. O tempo urge.

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