Rodopios…

A garota de cabelos ruivos rodopiava por entre as araras cheias de roupas. Sentia as texturas com as pontas dos dedos esticados, sorria para si ao se imaginar vestida com uma peça ou outra. Às vezes detinha-se diante de um peça e, entrelaçando as mãos com ares de cartomante, punha-se a imaginar as combinações possíveis entre blusas, saias, sandálias. Pensou no garoto do fundo da sala, aquele para quem lançava olhares esperançosos de recíproca. Imaginou-o enroscado com ela entre os lençóis de fio egípcio do setor de cama, mesa e banho. Perdida em memórias sobre o futuro, seu olhar cruzou com o olhar, refletido no grande espelho, de um homem que a observava da mesa do café. O computador aberto e uma xícara de espresso acompanhavam-no numa cena que a remeteu a um velho filme estrangeiro que assistiu nas aulas filosofia. Feliz, pelo mesmo espelho que a refletia, entregou-lhe um sorriso gentil. Ele baixou os olhos para a tela, talvez encabulado pelo encontro de olhares, e voltou a digitar sobre os rodopios da garota de cabelos ruivos. Quando pequena, perdeu-se da mãe numa dessas idas ao centro. Na confluência dos corpos que se movimentavam pelo calçadão, mãos de mãe e filha se desligaram por poucos segundos. A mãe pensou que a filha entrara na loja de roupas, a filha pensou que a mãe fora para a loja de sapatos e, sem se darem conta, cruzaram cada qual para o lado oposto. Depois de vários minutos de angústia, se reencontraram no mesmo ponto em que haviam se separado. Noutra ocasião, ainda meninota, entre amigas da escola, foi desafiada a roubar um batom da moda. No mesmo calçadão em que se perdera da mãe, aprendeu a dura lição. Pega pelo segurança da loja, passou meia hora à espera da mãe e do sermão que esta vinha ensaiando à caminho da loja. Às amigas, no dia seguinte, restou-lhes o olhar de decepção. Terminou o parágrafo e buscou, novamente, o olhar da garota de cabelos ruivos. Procurou-a nos reflexos das colunas espelhadas, buscou seus rodopios por ente as araras de roupas, seguiu com os olhos as filas dos caixas e nada. Impresso na sua memória, o sorriso gentil aqueceu o último gole do espresso gelado. Fechou o computador, pagou a conta no café e seguiu para o estacionamento num leve caminhar, sem suspeitar que o olhar da garota de cabelos ruivos o acompanhava de longe. Sentada no quiosque de sorvetes, entre uma colherada e outra do seu sunday de morango, ela se questionava sobre que coisas o homem de cabelos castanhos escrevia naquele computador.

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Under Pressure…

Percival não aguentou a pressão, explodiu. Deixou fluir pelas cordas vocais, na forma de um brado bárbaro, todas as palavras reprimidas pelos mecanismos ponderadores do cérebro. Pensava demais e por demais pensar, continha a fala. E fala contida na cachola é como água na panela de pressão. Sem uma válvula de escape, explode. E Percival explodiu. Cansou das piadas pseudo intelectuais do Malvino. Cansou dos mexericos depreciativos da Armênia. Cansou do sádico despotismo do Junqueira. Cansou do desprezo, do descaso, do escárnio. Cansou-se de si, pôs-se para fora com a fúria incontida de uma ressaca marítima. Faltando cinquenta e dois minutos para o fim do expediente, Percival despiu-se de suas desculpas, de suas roupas, de seus medos. Nu, percorreu os corredores sob olhares espantados, risinhos e sussurros. Diante da sala de reuniões, deu as costas aos curiosos e defecou no carpete. Voltando-se para a multidão estarrecida, recolheu suas fezes com as mãos e as elevou às alturas, como um sacerdote em ato de oferenda, murmurou palavras que Creyton, o office-boy, jura ter ouvido: caguei para vocês. De braços abertos, como um artista que se prepara para o seu gran finale, lançou suas fezes aos quatro cantos do escritório. Faltando sete minutos para o fim do expediente, diante da movimentada avenida e enrolado na toalha que adornava a mesa do café, Percival chamou um taxi. Pra onde, chefia? Para Pasárgada, mas sem pressa…

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Mundo cão…

O cinema errou feio, nada de macacos, os cães hão de dominar o mundo. Será um mundo cão. O dito popular, tive um dia de cão, há de ser ressignificado. Waldick Soriano desejaria ter retirado a palavra não de uma de suas canções de maior sucesso. Eu sou cachorro, sim. Nem mesmo o Rock da Cachorra, na voz de Eduardo Dussek, nada pode contra a cachorrada. Dia desses, passeando com a Aline por um outlet chiquetoso, tive a epifania do óbvio ululante. Estamos à beira de um planeta dos cachorros. Enquanto a Aline serpenteava pelas araras cheias de roupas de uma loja, eu buscava algo para molhar o bico. O providencial quiosque de cervejas especiais, além de me proporcionar a degustação de uma refrescante Session IPA, foi palco de uma inusitada constatação. Dois atendentes muito simpáticos trabalhavam no quiosque. De olho nos clientes e na tela do computador que exibia um jogo de futebol qualquer, um deles fez um comentário que não me passou despercebido. Hoje, misteriosamente, os carrinhos tem mais gente que cachorros. Fiquei confuso com a afirmação do rapaz que se desdobrava em encher copos de Guinness e maldizer o centro-avante do time adversário. Ao meu lado, um senhor de talvez cinquenta ou sessenta anos, me pergunta sobre o placar. Fiz-lhe a minha melhor cara de não faço a menor ideia e apenas dei de ombros. Minha mente que nunca foi atenta aos eventos futebolísticos apenas rodopiava na busca da compreensão daquela frase, dita sem maiores pretensões pelo jovem atendente. Mas que raios quis ele dizer com há mais gente que cachorros nos carrinhos? Indignado com a minha ignorância, pedi outro chope na esperança de perguntar-lhe, assim como quem não quer nada, sobre essa coisa de gentes e cachorros. Nada feito, o chope foi tirado e servido apenas com a visão periférica, o jogo lhe interessava mais que o meu semblante contorcido pelo sinal de interrogação. Dei um longo gole no chope para lavar minha angústia. Enquanto girava meu corpo sobre a banqueta para poder observar por onde andava Aline, ao lançar o olhar para a grande praça que conecta todas as lojas, como uma bigorna do Papa-Léguas em queda livre sobre a cabeça do Coyote, o comentário do atendente se fez luz. Diversos casais circulavam com carrinhos de bebês. Passeando por entre os corredores, dentro das lojas, os carrinhos abundavam. Apurando o olhar, a constatação! Parte dos carrinhos trazia em seu interior cães. Carrinhos de bebês recheados de cachorros. Tal qual um indígena pré-colombiano, de súbito, o elemento canino se fez presente – reza a lenda que os índios, alguns deles ao menos, na época do descobrimento, não se deram conta das caravelas no horizonte, pois aquelas monstruosas naus nada representavam no seu espectro cognitivo. Tão assustado quanto o menino daquele filme de suspense, eu disse para mim mesmo, vejo cães por todos os lados. Terminado meu chope, pus-me a circular e a observar o conteúdos dos carrinhos. Numa proporção de um cachorro para cada dois ser-humaninhos, aquele, segundo o atendente, era um dia atípico. Normalmente os cães são maioria e, se levarmos em conta os caninos que andavam em coleiras ou nos colos de seus donos, certamente a população canina ultrapassava a dos pequenos rebentos. Entrei numa loja em busca da Aline, que carrega no ventre nossa pequena Heloísa. Eu precisava compartilhar com ela minha descoberta. Flanando por entre bermudas e camisas em busca dos meus amores, ouvi os latidos estridentes de uma dessas criaturas. No colo de uma jovem senhora, o cão latia desesperadamente para um garoto que brincava com um boneco do Homem de Ferro. Incomodada, a jovem senhora pediu que o garoto parasse de se agitar, pois o totó estava desconfortável com os movimentos bruscos que Tony Stark fazia por entre sungas e biquinis. Ao lado dela, em consonância com seus pensamentos, outra jovem senhora, também acompanhada de seu totó, no carrinho de bebês, olhando torto para o garoto, questionou-se onde estariam os pais daquele demônio de calças curtas. Diante do ocorrido, em dúvida se eu não me encontrava numa das pegadinhas do Silvio Santos, pensei comigo: preciso de outro chope.

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Quem vai casar?

Sentou-se em frente a mesa do professor sem muita convicção. Professor, preciso te pedir algo. Pois pida, disse-lhe em um quase sorriso. Era seu costume falar certas palavras em português errado. Não por ignorância, mas por estratégia. É que ao proferir pobrema diante de um problema, a aura catedrática, muitas vezes inibidora de um diálogo mais fluído, evaporava-se em nuvens de descontração. Dizia ostra no lugar de outra, bão no lugar de bom. A faca era de dois legumes e o combinado, cãobinado. Tomate-ca-mente era automaticamente e, de trocadilho em trocadilho, de erro em erro, a comunicação se dava sem prejuízo. Fazia por graça, ainda que um ouvido ou outro, inadvertido, achasse um despautério professor falar assim. Então, professor, seu trabalho, aquele em grupo, que o senhor sorteou semana passada… As reticências, o olhar cabisbaixo e os vinte anos de sala de aula profetizavam o pedido de dispensa, restava saber o motivo, razão ou circunstância. Tô ligado, disse o professor para abreviar o suplício. Da lista de possibilidades, é sabido que a morte não se anuncia com semanas de antecedência, logo descartou o velório de alguma tia lá no interior do Paraná. Tamborilando os dedos sobre a mesa ao ritmo da marcha imperial, disparou. Quem vai casar? As sobrancelhas arqueadas e a luminosidade no rosto vieram seguidas de um sonoro eu. Eu, professor. Na sexta no civil, no mesmo cartório no qual sua futura esposa trabalha de recepcionista, logo pela manhã Sábado no religioso, para agradar a família dela, lá no interior do Paraná, na igreja matriz, bem a tardinha. Os trâmites para o casório já vinham de um ano antes. O aperto financeiro e a dificuldade de reunir toda a parentada fez com que a data coincidisse com a apresentação do trabalho da faculdade. É coisa do zodíaco, diziam-lhe os amigos solteiros. Antes evitar uma DP que afivelar-se nas coleiras do matrimônio. Sabiam que perderiam o goleiro das noites de terça para a futura esposa e o Master Chef. Já os familiares, agarrados à última esperança de finalmente ver-lhe casado, mandariam às favas o professor, tudo dentro das normas da ABNT, que fique claro. Segundo minha avó, disse-lhe, o homem nasce, cresce, fica bobo e casa. Pois é, professor… As reticências, novamente elas. O aluno esperava uma resposta. Era uma faca de dois legumes, o professor poderia dizer-lhe ema ema, cada um com seus pobrema. O professor sabia disso. A pausa dramática se estendeu por mais alguns segundos, o suficiente para uma gota de suor formar-se no canto esquerdo daquela têmpora universitária. Sem pobremas, meu caro. Trocamos com o grupo anterior e, tomatecamente, seu grupo fica para a ostra semana. Cãobinado? Oxi, professor. O alívio muscular podia ver-se em fluidas ondas sob a pele do rapaz. Desejou-lhe um bão casamento enquanto observava-o flanar dois centímetros acima do solo. De volta aos teclados do seu computador, à crônica que digitava quando fora interrompido pelo noivo atormentado, percebeu uma sombra diante de si. Antes que pudesse concluir a digitação desta linha, a sua frente, sem muita convicção, sentou-se outro aluno. Pida!

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Tocaia…

Sentamos para beber uma cerveja. Na mesa ao lado, quatro cavalheiros trocavam confidências. Talvez pelo alto teor alcóolico em suas correntes sanguíneas, o volume de suas vozes também estava elevado. Um deles, na casa dos seus cinquenta e tantos, se gabava do fato de sempre camuflar seus deslizes com a amante. A esposa, certa vez, encontrara um vidro de esmalte que não lhe pertencia no carro do marido. Com voz de barão, colocou-a no seu devido lugar. Ora, onde já se viu, aquele esmalte poderia ter vindo das mais inusitadas situações e, obviamente, nenhuma delas relacionada a existência de uma outra mulher. Rapidinhas nas pousadas urbanas, aquelas cujo movimento no horário do almoço concorre com os drive-thru dos fast-foods. Dia desses, por uma casualidade, estacionei em frente a um desses estabelecimentos justamente na hora do almoço. Foram menos de quinze minutos, o suficiente para ver, além do entra e sai de carros, rostos em esquiva toda vez que davam com a minha cara. Fazia o calor típico de um início de tarde quente em Sorocaba, eu mantinha todos os vidros do meu carro abaixados. Posicionado de cara com o portão da saída de um desses sei lá o nome, motoristas e acompanhantes, incautos, ainda risonhos, fechavam seus rostos ao se depararem com meus ray-ban escuros, barba mal feita e sobrancelhas de lobisomem. Meu deus, será um detetive particular, certamente foi o que se passou pela cabeça da jovem senhorita do sedan vermelho. Não, imagina, é algum vagabundo, detetives são discretos e eu estava mesmo era a me divertir. No utilitário de luxo, o motorista, ao dar de cara com o este Ed Mort de araque, titubeou. Embicou para a direita, deu seta para a esquerda e saiu cantando pneus enquanto sua passageira enfiava o rosto na bolsa. Talvez tenha sido numa dessas situações que o vidro de esmaltes do início de nossa conversa tenha vindo a cair sob o banco do cinquentão. Vá saber! Pois bem, voltando a minha tocaia incidental, houve o casal de moto, feliz e faceiro, o motorista até me deu um aceno. É que nem sempre as pessoas estão a cometer adultérios. Nada pude ver da pick-up insulfilmada que entrou logo depois da saída de um Uno de firma, daqueles com escada e tudo, certamente era o rapaz que conserta os ares condicionados, visto que ia solitário e na sua porta pude ler algo que terminava com “tec”. Passados os quase quinze minutos, dei-me conta que estava esperando no lugar errado. A mensagem no celular, aonde você está?, me trouxe a realidade. Sem saber, três minutos após a minha saída e a pedido do dono do estabelecimento, uma viatura da polícia chegou ao local para investigar o investigador casual, inadvertido, que já havia, para seu bem, partido.

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Círculo do Livro…

Certa vez, andando pelos calçadões do centro, encontrei uma simpática livraria. Círculo do Livro, dizia o letreiro. Entrei e passei muitos minutos, quase um hora eu diria, olhando capas, contracapas, lombadas. A atendente, dona de um sorriso ímpar, me deixou à vontade para explorar o peso, o cheiro, a textura dos livros. Dentre centenas de possibilidades, dei de encontro com Drácula. Nessa época, meu interesse pelo oculto, pelo sobrenatural, pelas forças das trevas era pouco mais que uma curiosidade infantil potencializada por filmes de terror que passavam no fim de noite. Drácula, a figura do vampiro, do conde de olhos fundos, nariz afilado, queixo anguloso e cabelos empastados de gomalina — impossível não lembrar dos saudosos Bela Lugosi e Christopher Lee — me chamou atenção. Escrito por um tal de Bram Stoker, a capa ilustrada com um clássico conde Drácula prestes a morder o pescoço de uma bela mulher em decotes provocantes foi fator decisivo para que eu conduzisse a mim e ao livro ao balcão. Vou levar, eu disse com convicção, mesmo que eu sequer tivesse atentado para o preço. E o preço sequer foi problema, o problema foi a pergunta feita pela moça do sorriso bonito: qual o seu código de associado? Associado? Sim, o Círculo do Livro é um clube de leitores e as obras são vendidas apenas aos associados. Mas eu não sou sócio, respondi embebido pelo embaraço. Você é maior de idade, perguntou-me já sabendo, pelo rubor do meu rosto, que não. Eu poderia fazer o seu cadastro, mas é preciso ser maior de idade. Drácula escorregava pelas minhas mãos enquanto minha cabeça baixava. Murmurei um obrigado e, sem conseguir olhar para a moça, e arrastei-me para a saída. Pode parecer bobo, mas aos 16 anos de idade, aquela fora a primeira vez que eu me interessei por um livro espontaneamente. Tudo o que tinha lido até então havia sido por obrigações escolares. Drácula não, Drácula foi puro desejo. Antes que eu abrisse a porta, a moça me chamou. Posso passar ele no meu cadastro de funcionária, assim você pode levar o livro. A imagem dela sorrindo e me estendendo o livro deveria ter sido o suficiente para eu tê-la pedido em casamento, mas eu era apenas um garoto que como poucos, gostava de Ramones e computadores de 8bits. Ela fez os tramites burocráticos e, por fazer a venda como se fosse para ela mesma, obtive o desconto de funcionários. Paguei o livro, disse o obrigado mais sincero que a minha antissocialidade permitiu e corri para o ponto de ônibus. Até hoje não sei o nome dela. Nunca mais a vi. Drácula continua até hoje na minha estante. O primeiro de algumas centenas de livros que passei a devorar por vontade, por curiosidade, por prazer… Obrigado, moça do sorriso ímpar!

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Quermesse…

A quermesse do bairro, em épocas juninas, trazia consigo o cheiro de pólvora. Como todos os garotos da rua, pelas manhãs de domingo íamos ao catecismo. Ouvíamos estórias dos tempos do zagaia. Numa delas, um cara barbudo saia distribuindo chutes e ponta-pés nos comerciantes do templo. Alguma coisa que ver como fazer negócios no entorno da igreja. Depois da catequese, íamos à missa. Mais estórias. Durante o resto do do domingo o protocolo era sempre o mesmo. Macarrão da mama, coca cola da mercearia do Mingo, pudim de leite da vó. Trapalhões, programa Silvio Santos. Repeteco do pudim de leite da vó. A noite, no entorno da igreja, toda sorte de barraquinhas vendiam guloseimas e diversões. Pesca, roleta, cuscuz, arroz-doce, quentão. Três quarteirões antes da igreja, numa minúscula lojinha mal iluminada, um arsenal de bombinhas, traques, busca-pés, rojões e biribinhas. Fogos caramuru não dá xabú, esse era o lema. Dos dez cruzeiros ganhos, cinco eram suficientes para encher os bolsos daqueles objetos do terror. Bolsos que poderiam por si só mandar para os ares umas tantas latinhas de extrato de tomares, tamanha era a quantidade de pólvora que neles ficava depositada. Munidos do pequeno arsenal bélico, nos embrenhávamos por entre os adultos. Uma rodinha, alguém acendia o isqueiro, a combustão do pavio dispersava a roda rapidamente. Três, dois, um. BUM. Jesus-Maria-José! O estouro sempre assustava as beatas compenetradas no giro da roleta. Algum adulto logo identificava os terroristas mirins apontando-nos o dedo seguido de palavras se só podiam dizer no lado de fora da igreja. Na periferia da festa, fuçávamos as latas de lixo em busca de módulos lunares. Uma “das fortes” era posicionada na guia de paralelepípedos. Sobre ela, uma lata de pomarola estrategicamente colocada de forma a absorver em seu interior a potência da explosão. Mais uma vez o isqueiro roubado do maço de cigarros de algum familiar entrava em ação. Três, dois, um. É, deu xabú! Desde a mais tenra idade já sabíamos o sentido da expressão propaganda enganosa. Pega outra. Aperta o fundo, pra garantir. Duas voltas de durex, para potencializar. Agora vai. Isqueiro, cadê o isqueiro. Ajeita a latinha. Três, dois, um. BUUUM. Feito engenheiros da Nasa, comemorávamos os talvez dois ou três metros de vertiginosa subida da lata de pomarola. Um pequeno estrondo para a humanidade, mas uma baita diversão para a molecada. Moleques lazarentos. Huston, temos um problema. A lata, na sua reentrada na atmosfera, atingiu a motoca de alguém. Correria. Como vietcongs, embrenhávamo-nos por debaixo das barracas, camuflados por toalhas de renda. Dissipado o quiprocó, juntávamo-nos na curva da escadaria de acesso à igreja para contabilizar o arsenal. Eu tenho três da forte e duas da fraca. Eu tenho duas fortes. Eu tenho quatro busca-pés e três da fraca. Enquanto as meninas prendadas distribuíam as prendas na barraca de pesca, pescávamos toda sorte de coisas para explodir. Tubo de plástico, lata de óleo, tijolo baiano, casca de banana. Os estouros se ouviam aqui e ali sempre seguidos de um resmungo, um reclamo, uma jura de que queimaríamos no fogo dos infernos. Para terminar, juntávamos as sobras, desmontávamos as bombinhas, fazendo com a pólvora finas linhas como nos filmes de espionagem. O cheiro de pólvora se misturava ao do quentão naquelas noites frias de junho.

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