Mundo cão…

O cinema errou feio, nada de macacos, os cães hão de dominar o mundo. Será um mundo cão. O dito popular, tive um dia de cão, há de ser ressignificado. Waldick Soriano desejaria ter retirado a palavra não de uma de suas canções de maior sucesso. Eu sou cachorro, sim. Nem mesmo o Rock da Cachorra, na voz de Eduardo Dussek, nada pode contra a cachorrada. Dia desses, passeando com a Aline por um outlet chiquetoso, tive a epifania do óbvio ululante. Estamos à beira de um planeta dos cachorros. Enquanto a Aline serpenteava pelas araras cheias de roupas de uma loja, eu buscava algo para molhar o bico. O providencial quiosque de cervejas especiais, além de me proporcionar a degustação de uma refrescante Session IPA, foi palco de uma inusitada constatação. Dois atendentes muito simpáticos trabalhavam no quiosque. De olho nos clientes e na tela do computador que exibia um jogo de futebol qualquer, um deles fez um comentário que não me passou despercebido. Hoje, misteriosamente, os carrinhos tem mais gente que cachorros. Fiquei confuso com a afirmação do rapaz que se desdobrava em encher copos de Guinness e maldizer o centro-avante do time adversário. Ao meu lado, um senhor de talvez cinquenta ou sessenta anos, me pergunta sobre o placar. Fiz-lhe a minha melhor cara de não faço a menor ideia e apenas dei de ombros. Minha mente que nunca foi atenta aos eventos futebolísticos apenas rodopiava na busca da compreensão daquela frase, dita sem maiores pretensões pelo jovem atendente. Mas que raios quis ele dizer com há mais gente que cachorros nos carrinhos? Indignado com a minha ignorância, pedi outro chope na esperança de perguntar-lhe, assim como quem não quer nada, sobre essa coisa de gentes e cachorros. Nada feito, o chope foi tirado e servido apenas com a visão periférica, o jogo lhe interessava mais que o meu semblante contorcido pelo sinal de interrogação. Dei um longo gole no chope para lavar minha angústia. Enquanto girava meu corpo sobre a banqueta para poder observar por onde andava Aline, ao lançar o olhar para a grande praça que conecta todas as lojas, como uma bigorna do Papa-Léguas em queda livre sobre a cabeça do Coyote, o comentário do atendente se fez luz. Diversos casais circulavam com carrinhos de bebês. Passeando por entre os corredores, dentro das lojas, os carrinhos abundavam. Apurando o olhar, a constatação! Parte dos carrinhos trazia em seu interior cães. Carrinhos de bebês recheados de cachorros. Tal qual um indígena pré-colombiano, de súbito, o elemento canino se fez presente – reza a lenda que os índios, alguns deles ao menos, na época do descobrimento, não se deram conta das caravelas no horizonte, pois aquelas monstruosas naus nada representavam no seu espectro cognitivo. Tão assustado quanto o menino daquele filme de suspense, eu disse para mim mesmo, vejo cães por todos os lados. Terminado meu chope, pus-me a circular e a observar o conteúdos dos carrinhos. Numa proporção de um cachorro para cada dois ser-humaninhos, aquele, segundo o atendente, era um dia atípico. Normalmente os cães são maioria e, se levarmos em conta os caninos que andavam em coleiras ou nos colos de seus donos, certamente a população canina ultrapassava a dos pequenos rebentos. Entrei numa loja em busca da Aline, que carrega no ventre nossa pequena Heloísa. Eu precisava compartilhar com ela minha descoberta. Flanando por entre bermudas e camisas em busca dos meus amores, ouvi os latidos estridentes de uma dessas criaturas. No colo de uma jovem senhora, o cão latia desesperadamente para um garoto que brincava com um boneco do Homem de Ferro. Incomodada, a jovem senhora pediu que o garoto parasse de se agitar, pois o totó estava desconfortável com os movimentos bruscos que Tony Stark fazia por entre sungas e biquinis. Ao lado dela, em consonância com seus pensamentos, outra jovem senhora, também acompanhada de seu totó, no carrinho de bebês, olhando torto para o garoto, questionou-se onde estariam os pais daquele demônio de calças curtas. Diante do ocorrido, em dúvida se eu não me encontrava numa das pegadinhas do Silvio Santos, pensei comigo: preciso de outro chope.

#crônicasdeumterráqueo