Grilo…

Sua constituição física não ultrapassava os um metro e cinquenta centímetros e quarenta e sete quilos e meio. A tênue camada de fibras musculares eram-lhe suficientes para cobrir-lhe os ossos. Quando criança, recebera o apelido de louva-deus. Mais tarde, já no chão de fábrica, chamavam-no chassi de grilo. Para os íntimos, apenas Grilo. Sua história é a historia de qualquer um de nós. Nascido José de Queiroz, Grilo foi mais um lançado neste mundo sem o manual de instruções. Logo cedo, sua avó quis mostrar-lhe o caminho para o céu. Devota, Ludismara, Dona Mara entre os irmãos de fé, carregava Grilo para os cultos. Ainda meninote, Grilo percebeu que sua vinda ao mundo, além de desprovida do manual de instruções, se deu desprovida de fé. No culto, o blábláblá do reverendo era um relés ruído de fundo. Grilo tinha sua atenção voltada às luzes cintilantes da cidade, aquelas que se podiam ver por uma das frestas do imenso vitral da igreja. Apesar dos protestos de Dona Mara, durante a adolescência Grilo trocou a igreja pelo bar. Seus pais, pouca atenção davam ao pequeno Grilo — a eles daremos pouca atenção também. Pequeno tanto em proporções físicas como no gosto popular. No alto dos seus 25 anos, Grilo era apenas uma sombra. Pouca sombra, como gozavam os amigos da escola técnica. Viva por entre bêbados e vagabundos desde os treze anos. Servia-lhes de office boy, indo e vindo com recados e pequenos favores. Bebericava as doses de pinga, rabos de galo e outras misturas típicas dos balcões encardidos e mal servidos pelos Seus Raimundos da vida. Quando algum anônimo mais abastado resolvia, tomado pela generosidade que somente uma quantidade de álcool no sangue é capaz de prover, pagar uma rodada para a trupe de boêmios, Grilo, valendo-se de sua ágil pequenez, era o primeiro a receber uma dose de Old Eight. Comia o que restava nas panelas da casa. Dormia num colchão, num canto, num pequeno quarto que dividia com seu moribundo avô e duas galinhas d’Angola, mimos de Dona Mara — apenas as galinhas, que fique claro. Na fábrica, por benevolência do Senhor Aparecido, conseguiu o posto de auxiliar de almoxarife. Das oito às dezoito ajudava Rubens da Mata, o Rubão, com as prateleiras lotadas de peças. Rápido como um camundongo flagrado pelo acendimento de uma luz qualquer, Grilo subia e descia as escadas corrediças catalogando, organizando e despachando todos os pedidos que Rubão ordenava de sua confortável cadeira de supervisor. No fim do dia, Grilo afogava seu cansaço em opacos copos de cerveja barata. Sem saber como nem porque, sem se dar conta dos dias e noites, Grilo seguia existindo, sem o manual de instruções. Nos fins de semana, quando o salário permitia, Grilo se dava ao luxo de um passeio pela cidade. Anônimo, Grilo se metia em meio às luzes que contemplava quando meninote. A avenida central, repleta de bares de balcões limpos e atendentes sorridentes, cheios de gente bonita, gente que bebia misturas coloridas com frutas e pequenos guarda-chuvas, gente que bebia cerveja cara em copos translúcidos. Anônimo, Grilo encostava sua carcaça num poste, acendia um cigarro e, por algumas horas, misturava-se às sombras. Seus olhos miravam um mundo que não era o seu. Um mundo cujo o blábláblá do reverendo denunciava como o fins dos dias. Um mundo no qual as pessoas pareciam saber exatamente o que fazer. Pobre Grilo, mal sabe que aqueles drinks coloridos com frutas e guarda-chuvas não passavam de cervejas baratas em balcões encardidos, placebos. Todos, sem exceção, jogados no mundo sem o manual de instruções. Na volta, caminhando sob a brisa fresca da madrugada, Grilo deixava escapar uma lágrima. Já enrolado nos trapos que fazia de coberta, antes de entregar-se ao sono, como em todas as noites, Grilo voltava-se para o seu moribundo avô com um pergunta na mente. Uma pergunta nunca feita em voz alta. A vida é isso mesmo? A vida é isso mesmo, disse Dona Mara quando acordou Grilo. O corpo do avô já não estava lá. Nem a cama, para dar mais espaço para as d’Angola. A vida é isso mesmo.

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