Doutor Paranhos…

O problema com os médicos é a especialização. Da clínica geral à escolha de uma especialidade, algo se perde: o humano. No fim das contas, deixamos de ser quem somos e passamos a ser apenas um punhado de pulmões, corações, ossos, pés, peles ou visículas. A mente do Paranhos navegava em pensamentos difusos sobre a prática médica quando o interfone tocou pela quarta vez. Dr. Paranhos, a paciente continua aguardando. Mande-a entrar, disse Paranhos ajeitando o colarinho. Bom dia, doutor. Bom dia, dona… dona… Elisete, doutor. Ah, sim, dona Elisabete, pois não, o que sentimos hoje? Me dói o peito, doutor. O coração. Dr. Paranhos, Juca do Limão nos tempos da faculdade de medicina, decidiu ser menos especialista. Diante de dona Elisete, teve um rompante de humanismo. Aconetceu algo, dona Elisabete, que pudesse desencadear essa dor? Dona Elisete não entendeu a pergunta. O peito lhe doia, o coração batia de forma estranha, como poderia ela saber o que lhe passou com o coração? Não era ele o cardiologista indicado pelo plano de saúde? Não sei, doutor. Paranhos levantou-se e contornou sua mesa, colocando-se ao lado da ressabiada paciente. Pondo a mão em seu ombro esquerdo, perguntou, como andam as coisas em casa, dona Elisabete? Sem saber ao certo o que dizer, dona Elisete disse que Joaquim, o marido, havia morrido. Por deus, dona Elisabete! Paranhos tomou-lhe as mãos em sinal de respeito e deu-lhe os pêsames. Mas morreu de que o seu Joaquim? Bactéria, disse ela sem saber ao certo de que mal sofria aquele médico. Bactéria? Paranhos rodopiou sobre os calcanhares e afastou-se de dona Elisete. Qual bactéria, perguntou enquanto tentava atrapalhadamente abir o frasco de alcóol gel promocional que o último representante de laboratório deixará em seu consultório. O peste, doutor. Peste? Paranhos não sabia o que pensar. Teria ele perdido algum noticiário? Logo ele, viciado em telejornais! Peste? Seria mais uma daquelas enfermidades que pulam dos bichos para os humanos? Peste, mas que peste, dona Elisabete? Bactéria era um marginalzinho das redondezas do Capão, bairro rural no qual dona Elisete vivia desde seus catorze anos. Lá conheceu Joaquim. Lá casaou-se com Joaquim. Lá descobriu que Joaquim não valia nada. Joaquim se acabou nos vícios: a bebida, o jogo e os rabos de saia. Há dez anos que dona Elisete havia desestido do marido. Ignorava suas traições. Ignorava suas bebedeiras. Ignorava o jogo do bicho. Devotou sua vida a Jairzinho, o único filho, estudante de direito na capital. Com muito custo, dona Elisete fez o pequeno roçado de leguminosas render o suficiente para ver o menino ter um futuro melhor que o dela, melhor que o de Joaquim, cujas dividas de jogo não foram esquecidas por Bactéria. Dona Elisabete? Dona Elisabete? Paranhos notou que a paciente estava em outro mundo. A morte do marido, na certa, havia abalado aquela pobre mulher. Mal sabia Paranhos que dona Elisabete, digo Elisete, quando soube da morte matada de Joaquim, abriu a cidra que tinha na geladeira desde o último natal e deleitou-se com uma pequena embriaguez. Desculpe, doutor. O que o senhor disse? Dona Elisabete, sua dor no peito nada tem que ver com a cardiologia, mas com a ciência da alma. Dona Elisete não ouviu a última parte, as pontadas no peito a fizeram perder a cor.  Paranhos a serviu um copo de água. A ciência da alma, os problemas de dona Elisabete eram de outra ordem. A tristeza pela perda do homem amado, do companheiro de uma vida, foi o diagnóstico. Vou encaminhá-la para o Figueira, psicólogo e amigo dos tempos em que Juca do Limão era o centro das atenções nas festas universitárias da faculdade de medicina. Figueira há de tratar dessa dor, dona Elisabete. Elisete. Quem? Elisete, doutor. Com o papel timbrado com o pedido de encaminhamento, dona Elisete, sem saber de suas dores, caminhou até a recepção. Paranhos despediu-se não sem antes dizer uma frase de animo à paciente. O universo conspira, dona Elisabete. Elisete, disse a recepcionista. Sim, sim. Paranhos acenou com a cabeça enquanto fechava a porta. De volta a sua mesa, Paranhos sentiu-se feliz por ter se desprendido da frieza da especialização. Não, ali não havia apenas um coração. Ali havia uma mulher cheia de vida, de história, de sentimentos. Quarenta e cinco minutos depois, o corpo de dona Elisete dava entrada no necrotério municipal. Infarto.

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