Coisa de meninos…

Eram os últimos dias de dois mil e dezessete. Aline conseguiu um horário com a manicure e lá fomos nós. Como todo bom marido, fiquei à espera na saleta destinada aos bons maridos. Saquei meu e-reader e pus-me a ler minha leitura do momento, O Lobo da Estepe. Ao meu lado, um garoto de seus oito ou nove anos. É que a saleta dos bons maridos também é a saleta dos bons filhos. Eu com o meu e-reader, ele com o seu tablet. Nos olhamos por poucos segundos, tempo suficiente para entendermos que cada qual tinha o seu brinquedo e, portanto, nenhuma interação social era necessária. Como bom filósofo que tento ser, ao estilo Sartre, fiquei com um olho na tela do e-reader e outro no ambiente. São nesses espaços – além do banho, óbvio – que surgem boas ideias para crônicas. O garoto, mais comprometido com o seu tablet que eu com o meu e-reader, ignorava o palavrório da mulherada que entrava e saia. Algumas delas, enquanto aguardavam a máquina de cartões de crédito processar suas despesas, davam rápidas olhadas nas duas criaturas da sala de espera. Ah, os males da tecnologia, olha só esses dois, de caras coladas nas telas do seus dispositivos eletrônicos, pensou a moça de cabelos escovados. Uma outra, cujas as madeixas estavam protegidas por um saco plástico  – chovia lá fora –, cogitou que fossemos, eu e ele, pai e filho. A secretária, aquela que tudo sabe, fez que não com a cabeça. Santo Facebook, pensou o cabeleireiro, é o que salva esses pobres apêndices de hoje em dia. Antigamente eram aquelas revistas de variedade. Todo bom salão – ou consultório médico – tinha sua pilha de revistas. Os acompanhantes podiam matar o tempo folheando uma Contigo de Março de Mil Novecentos e Setenta e Três em pleno Mil Novecentos e Noventa e Nove. Mas não para nós, eu e o garoto estávamos aparados pela tecnologia, mas distantes do vazio das redes sociais. O Lobo da Estepe comigo, um jogo de ligar pontos com ele – sim, eu consegui espiar o que se passava na tela do brinquedo dele, coisa de meninos. De súbito, uma senhora, espalhafatosa, adentrou ao salão. Vinha com duas sacolas e uma voz de trombeta do apocalipse. Meninas, trouxe bolo! Dois! E anunciando a boa nova, esgueirou-se salão adentro. Tanto eu como o garoto paramos nossas atividades para contemplar a anciã chique-no-último. Dois bolos, eu tenho certeza que o garoto pensou o mesmo que eu: um para cada! Coisa de meninos. Quando o som da voz da velha senhora se perdeu, nossos olhares se cruzaram por mais um ou dois segundos. Com um leve arquear de sobrancelha esquerda, o semblante do pirralho deixou claro que ele também havia espiado a tela do meu brinquedo, cheia de letras monocromáticas e sem graça. Antes que eu pudesse lançar-lhe um olhar de desdém, a velha senhora reapareceu. É um de laranja e o outro é com aquela cobertura branca que vocês gostam. Um pra hoje e outro para amanhã, instruiu a dama dos bolos. E já sabem, né? O coro de meninas respondeu em uníssono: nenhum pedaço para corinthianos. O garoto congelou ao ouvir a réplica da velha senhora. Se der um pedaço do meu bolo para corinthianos, eu mato na paulada. O garoto entrevou-se na sua tela. Eu, que de futebol entendo apenas que a bola é redonda, já estava prestes a delatar o corinthianinho à minha direita quando a velha senhora parou diante de mim e, com voz de professora da quinta séria que tinha sido, questionou-me: você é corinthiano? Apenas pude balbuciar um não. Se for, eu mato na paulada, advertiu a dama dos bolos. Apenas pude balbuciar um segundo não. Então, virando-se para a secretária, aquela que tudo vê, completou: pode dar um pedaço pro moço. A senhora, com seu garbo e elegância, desapareceu pela mesma porta que chegara. Apenas o rastro do seu perfume Rastro e as risadas das meninas do salão permaneceram. O garoto havia escapulido também, aproveitou-se do meu interlúdio com a madame e foi-se para debaixo da saia da mãe, o sacripanta. Coisa de meninos…

#crônicasdeumterráqueo