Boulevard

Sentou-se a beira de um boulevard qualquer. Sobre a mesa, uma xícara de café fumegante, um maço de cigarros fechado e o velho carderno de anotações. Me dá um, senhor? O jovem de jeans sujos surgiu como assombração. Não. Não? Não. O jovem se distanciou calado, mas seu olhar denunciava um séquito de injurias ditas mentalmente. Recolheu o maço de cigarros e levou-o ao bolso da jaqueta. Deixara de fumar havia anos. Sempre carregava consigo um maço a titulo de lembrete. Sou mais forte que você. Sorveu um gole do café e pos-se a contemplar os transeuntes. O boulevard fervilhava de turistas. Iam e vinham com suas máquinas fotográficas e com seus idiomas incompreensíveis. Na mesa ao lado, um casal de suecos. Ou seriam noruegueses? De fato, não fazia a menor ideia. Ela apontou para a garrafa de água que um dos garçons levava para um outro clinete qualquer. Ele gesticulou com os dedos a mímica local pra um cafézinho. De certo, aprendeu observando os locais. Observar, eis, talvez, a única característica que nos distingue dos demais animais. Somos homos observatorius. Bom, nem todos. Na verdade, a maioria passa pelos mundo sem dar uma boa observada. Riu de si mesmo e sorveu mais um gole do seu café. Às vezes se pegava nessas elocubrações sobre a natureza humana. Quando pequeno, na escola, ao ser perguntado pela professora o que gostaria de ser quando crescesse, respondeu antropólogo. A professora riu, afinal, de onde raios uma criançca de seis anos responderia antropólogo? Ouvira a palavra num noticiário e, feito papagaio, a reproduziu quando julgou oportuno. A antropologia ficou lá apenas no vocabulário. Quando cresceu, tornou-se contador. Nem saberia explicar o motivo, mas um dia se descobriu trabalhando num escritório qualquer. Logo estava numa faculdade qualquer. Tempos depois, era gerente de um negócio qualquer. Os números se interpuseram em sua vida, a única coisa mal contada nessa história. Vivia? Eu diria que não, mas como narrador, devo me ater a minha neutralidade. Bom, voltemos ao boulevard. Os suecos (ou dinamarqueses), agora discutiam. Ela gesticulava frenéticamente com a garrafa de água entre as mãos. Ele apenas dava de ombros. Vencido, ele se levantou e entrou no café. De seu canto, nosso protagonista observava a mulher. Teriam, como dizem hoje em dia, tido uma D.R.? Aparentava ser um casal recente, desses que ainda enamorados, se lançam em viagens românticas por outros continentes. Teria ela descoberto que ele expreme o tubo de pastas de dentes no extato meio, deixando aquele bolo de pasta no final do tubo, deformando a simetria engenhosa que os especialistas em embalagens projetaram para obter o maior rendimento ao pressionar a pasta de uma extremidade a outra? Ou, ainda, teria ela por fim descoberto que ele tem por hábito cheirar as pontas dos dedos depois que estes percorrem localidades pouco ortodoxas do corpo? Antes que uma nova hipõtese pudesse ser formulada, o suéco/finlandês retornou com uma nova garrafa de água. Sem gás. De todas as trivialidade que podem levar um casal a discutir, neles foi a inércia masculina para trocar a indesejada água com gás por outra, sem gás. O último gole de café já havia esfriado. O jovem de jeans sujos reapareceu. Entre os lábios, dependurado, um cigarro amarrotado. Tragou-o com vigor. Baforou a fumaça para a esquerda, sem perceber, diretamente nas fuças do suéco/sabe-se-lá-o-quê. Bateu as cinzas na xícara do nosso protagomista e, antes que pudesse seguir seu caminho feliz e vingado, deu de cara com o suposto nórdico. Obviamente, não se entenderam. O jovem gesticulava e apontava para a mesa, para o nosso protagonista. O suéco (fiquemos com o suéco, para simplificar) gesticulava e apontava para o cigarro. Ela acenava para o garçom, na esperança de que ele pudesse desfazer o imbrólio. Nosso protagonista deixou sobre a mesa algumas notas. Recolheu seu velho caderno de anotações e seguiu para o escritório. Vivia? Eu diria que em pequenas doses, a beira de boulevares.
 
#crônicasdeumterráqueo